terça-feira, 31 de março de 2015

Reflexões Sobre Papel Almaço


Fazia tempo que não olhava para uma resma de papel almaço, mas não existem muitas opções quando se fica quatro meses sem um computador. Pra alguns, mais jovens, até mesmo a palavra resma já parece sair de alguma filosofia hermética e antiga. E, pensando bem, até que faz sentido que pensem assim. Mas ela existe, e está aqui na minha frente, cheia de folhas brancas com linhas azuis me indicando o caminho a percorrer com minhas ideias e aguardando, imóvel e pacientemente, enquanto eu as formulo. À mão, preencho cada letra, folhas e folhas de trabalho hercúleo. Mas o resultado compensa e vai além da poética dessa forma tão solene de criação que é a analógica. E, graças à tecnologia de reciclagem do papel, nem é mais tão ecologicamente incorreta assim.

Pensei nos antigos. Eles sim que tinham um trabalhão! Um mesopotâmio, ao ter uma ideia, refletia antes se valia realmente a pena registrá-la, afinal, antes do registro, tinha que preparar a argila e colocá-la no molde. Mesmo se a ideia fosse ótima, durante o processo de preparação da placa e a gravação dos caracteres cuneiformes, dava tempo de meditar e aprimorar bem o que escreveria, sem espaço pra bobagem. Imagino que um caderno de páginas de pedra não deveria ser nada fácil de carregar, mas já era mais plausível e tranquilo do que carregar as paredes das cavernas.

Mesmo com a invenção do papiro, do pergaminho e, posteriormente do papel, ainda havia algum ritual de preparação. Apontava-se a pena, diluía-se a tinta, e tínhamos aí mais uma última chance de amadurecer a ideia antes de sair rabiscando o suporte que, passivo, apenas recebia a informação. Jazia ali, plácido e puro, aguardando que o mestre o gravasse, letra a letra, calmamente. Até mesmo com a máquina de escrever havia esse momento quebra-gelo e maturação da mensagem. Inseria-se o papel, ajustava-se a tabulação e margens, conferia-se se o papel estava horizontalmente alinhado e, só então, datilografava-se (atenção ao verbo, quase extinto), pressionando com cuidado e firmeza aquelas teclas pesadas, ritmada e atentamente, para que os tipos imprimissem bem o papel sem se enroscar, ou algum erro grave de grafia colocasse a página inteira em risco de ir pro lixo e ter que ser redatilografada (e temos aí um outro verbo quase extinto).

Enfim, temos novamente um computador nas mãos. Me estranho com o cursor que pisca insistentemente na tela, me desafiando. Por mais que eu digite, ele continua a piscar, a pedir mais, e mais, e mais palavras. Tento mostrar quem manda, quem dá o ritmo. Paro de escrever, levanto e vou fazer um café, tento criar um método pra nos deixar mais íntimos novamente, recuperar o respeito, aquela química de antes, tirar nossa relação dessa ansiedade juvenil, desse gozo precoce, que me parece epidêmico em todos os setores da vida. Tem sido uma boa luta de readaptação e, felizmente, posso dizer que estamos obtendo algum sucesso. E o café, no fim das contas, só tem servido pra atrapalhar minhas noites de sono.


terça-feira, 24 de março de 2015

Álbum : Meio Desligado [1994, Kid Abelha]

Em 07 de Novembro de 2014, o álbum Meio Desligado completou 20 anos. É um álbum marcante na minha história pessoal por motivos tantos e impossíveis de enumerar. Por ser um registro sonoro que admiro em vários quesitos, resolvi revisar e reescrever essa publicação feita originalmente para o Culturanja de 18 de abril de 2008.

Sei que tenho que parar com essa mania de "microondas" requentador de textos, mas em tempos que me recupero de uma revolta tecnológica aqui em casa, não vi ponto negativo em ressugerir aos amigos a audição deste álbum enquanto preparo mais coisas inéditas para as próximas semanas.

Bruno Fortunato, George Israel e Paula Toller, o Kid Abelha.


“Kid Abelha, Lobão?!” Muitos me recriminarão, mas o álbum é bom sim e merece uma resenha.

A idéia deste álbum surgiu de um set de versões acústicas das músicas do primeiro disco do Kid Abelha, que a banda tocava nos Bis dos shows normais. Gostaram da idéia e começaram a acrescentar ao Bis outras canções que combinassem com esse formato. Registradas ao vivo, em shows realizados entre março e julho de 1994, nas cidades Curitiba, Belo Horizonte, Crisciúma, Concórdia, Venâncio Aires e Santa Bárbara. Depois acrescentaram alguns instrumentos e arranjos a mais em seu home-studio, o Som de Neguin’ (também chamado por eles de "casa").

O resultado final é surpreendente: nitidez e uniformidade nos sons dos instrumentos captados ao vivo e nos acrescentados posteriormente, em estúdio. O toque especial na sonoridade fica com a participação do público e o ambiente de show - preservados da captação ao vivo - o que cria a impressão de um show acústico completo e esquenta o disco feito um abraço carinhoso. Infelizmente, por ser resultado de diversos registros de áudio ao vivo e overdubs em estúdio, não foi possível preparar uma versão em vídeo deste álbum que, se existisse, estou certo de que seria uma beleza.

“Meio desligados, mas totalmente antenados” é como a banda, pertinentemente, se descreve no encarte do CD (que também foi o último álbum da banda a ser lançado em vinil), o Kid Abelha consegui a criar um clima aconchegante e sofisticado que pouca gente conseguiu fazer em um Acústico. As versões de Como Eu Quero, com a participação de Ritchie, de Solidão Que Nada, do Cazuza e Grand’ Hotel, esta com arranjos de cordas do mestre Wagner Tiso, ou até mesmo a simples e aconchegante Seu Espião, são realmente muito bonitas.

Com 600 mil copias vendidas, ganhando disco de ouro, de platina e o primeiro disco duplo de platina da banda, o Meio Desligado é um álbum muito bem feito. Bem arranjado; rico em instrumentação, com participações muito pertinentes, como Lulu SantosRitchie e até mesmo o Mutante Sérgio Dias, que toca uma Cítara na faixa de abertura Deus; o álbum possui versões muitas vezes mais interessantes às do Acústico MTV Kid Abelha de 2002, que atualmente é o Acústico MTV mais vendido da história do projeto, com 2 milhões de cópias vendidas, superando o ótimo Acústico dos Titãs, que vendeu 1,7 milhões de cópias.

Penso que a idéia do acústico é mostrar a real força de uma boa canção, aquela que funciona independente da forma que é apresentada, que tem força por si só, que tocada num violão solitário também é capaz de emocionar. Esse disco é a demonstração que as canções do Kid Abelha, em grade parte escritas pelo Leoni, um compositor de mão cheia, funcionam, sim, muito bem e em vários formatos.

Então, está aí a sugestão: deixe o preconceito de lado e ouça esse álbum com carinho.




Tracklist

01. Deus (Apareça Na Televisão)
02. Alice
03. Gosto De Ser Cruel
04. Como Eu Quero
05. Por Que Não Eu
06. Seu Espião
07. Eu Tive Um Sonho
08. O Beijo
09. Cristina
10. No Meio Da Rua
11. Nada Por Mim
12. Grand' Hotel (Introdução)
13. Grand' Hotel
14. Solidão Que Nada
15. Canário Do Reino