sexta-feira, 26 de agosto de 2016

A Boa Morte


Quando vier a Primavera,
Se eu já estiver morto,
As flores florirão da mesma maneira
E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.
A realidade não precisa de mim.
Sinto uma alegria enorme
Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma
Se soubesse que amanhã morria
E a Primavera era depois de amanhã,
Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.
Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo?
Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;
E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.
Por isso, se morrer agora, morro contente,
Porque tudo é real e tudo está certo.
Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem.
Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele.
Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências.
O que for, quando for, é que será o que é.



A alegria de Fernando Pessoa, que assina o poema acima, "Quando vier a Primavera", como Alberto Caieiro, é a alegria que também busco. Essa paz de saber-se mortal, finito e não se abalar; pelo contrário, sentir-se livre e tranquilo com o inevitável destino. E não só eu, é a paz que a humanidade persegue desde tempos imemoriais, quando surgiram, pela primeira vez, as dúvidas sobre o que é a morte.

Nasceram, então, dos questionamentos, um infinito de mitos, medos, dogmas, traumas, ansiedades, remorsos, festas, lágrimas. Tristemente, principalmente no mundo ocidental, a morte se tornou algo ruim, que desperta medo, que não se deve falar ou pensar sobre. E hoje, colhemos frutos amargos desse que é um dos maiores erros da cultura contemporânea de negação da morte. Vivemos despreparados para os adeuses, que são tantos e sempre serão.

Para os Budistas, os Espíritas e outros reencarnacionistas, o bom pensar na morte resulta num bom pensar na vida e, por consequência, um melhor viver; é bom e necessário. Afinal, como diz outro poeta, Vinícius de Moraes, no Poema de Natal: "Por isso temos braços longos para os adeuses". Somos feitos pra isso.

Caso ainda não saiba, qualquer um de nós pode morrer a qualquer momento, é inevitável. Estar doente ou a saudável não alteram as probabilidades de óbito, o próximo passo não é garantido para ninguém. Quantas vezes já passamos triscando pelo nosso quase último momento e nem percebemos, ou percebemos e continuamos a mesma vida postergadora, confiando na ilusão do amanhã.

Foram tantos alertas mais leves que não me fizeram aproveitar melhor o tempo! A vida é urgente, sim, e eu precisei ganhar duas cicatrizes físicas que me lembram disso a cada vez que tiro a camisa. Hoje agradeço aos autores delas, tanto ao agressor quanto ao médico que me salvaram. Sim, salvaram, os dois. O primeiro, de que eu desperdiçasse a vida; o segundo, de que eu perdesse a vida. Mas espero que a maioria de nós não precise de algo tão drástico para melhorar a forma de viver.

No Cristianismo existe a figura da Ressurreição, que é voltar da morte com o mesmo corpo. Clínica e fisicamente impossível, por motivos óbvios – pelo menos até agora –, mas metaforicamente viável, além de um belo conceito. Ressuscitamos quando, por motivos tantos, deixamos morrer o velho Ego e, no mesmo corpo, ressurgimos renovados. Ou, de forma mais simples, a cada novo dia, que nos é dado em branco, para fazermos algo melhor do que no dia anterior. Foi o que aconteceu comigo.

Uma nova vida num mesmo corpo é possível. Talvez seja essa a mensagem, a princípio esdrúxula, da ressurreição bíblica que, agora, já me faz melhor sentido. E ressuscitemos hoje, que é o único tempo que existe. Sem medo da morte, morremos e ressuscitamos todos os dias, sem sofrer, conforme nos sugerem vários dos grandes avatares que já caminharam por essa Terra. Afinal, voltando ao Vinícius de Moraes, no já citado Poema de Natal: "da morte, apenas nascemos, imensamente."

sexta-feira, 19 de agosto de 2016

Críticas à crítica

Não sabemos quando na história humana atribuímos ao verbo "criticar" o aspecto exclusivamente negativo. Hoje, criticar significa falar mal, mas o dicionário sempre nos lembra que criticar é apenas avaliar, julgar. Ou seja, também é possível criticar, avaliar ou julgar algo positivamente.

O processo crítico depende de que quem critica tenha algum conteúdo, argumentos que dialoguem, que o conectem com o que está sendo avaliado, seja ele uma obra de arte, um costume, ou uma pessoa. Para avaliar algo é preciso compreendê-lo, entender o processo que o fez ser o que é e o onde ele pretende chegar. Assim, após entendido, refletido, digerido, emite-se o juízo positivo ou negativo.

Quando não entendemos o que estamos avaliando, achamos feio, falamos mal. E arrogantes que somos, concluímos que falar mal é mais fácil do que tentar entender e se conectar. Talvez seja daí, pela maior incidência de julgamentos negativos, pela facilidade de produzi-los, nos desacostumamos com a possibilidade da existência da crítica positiva e nos condicionamos de que crítica é algo sempre negativo.

Mas, sem remorsos! A culpa não é só nossa. Não nos preocupamos em entender o outro lado, porque não fomos treinados pra isso. Sócrates sugeria o uso de três filtros para averiguar se uma opinião merecia ser emitida: Bondade, Verdade e Utilidade. Ou seja, uma opinião só mereceria ser emitida se fosse para o bem, fundada na verdade e tivesse alguma utilidade. Desta forma, sem uma cultura crítica, que deveria nos ser ensinada nos bancos escolares, nem sequer sabemos da existência de Sócrates, quem dirá do que ele disse. E, assim, unindo desconhecimento com a impressão de que temos que emitir opinião sobre tudo, essa urgência opinativa que as redes sociais nos trouxeram, falamos muito e sem pensar, tanto que poucos se lembram das próprias opiniões, se afogando em um mar de contradições sem perceber.

É hora de despertar! A crítica negativa é o atalho do preguiçoso, o ato falho do desavisado, como também o são as atitudes negativas. É mais fácil desdenhar do que cogitar; jogar fora do que consertar, seja um eletrodoméstico ou um relacionamento; é mais fácil dizer que não gostei do que assumir não ter entendido e me esforçar para entender. Tudo sendo imperfeito, é mais fácil apontar alguns dos milhares defeitos, que obviamente existirão, do que analisar um pouco mais a fundo e identificar as exceções da regra, onde não há defeitos ou erros, e tecer algum elogio.

Criticar é um ato de conexão e só se conecta quem se coloca no mesmo nível, compartilha dos mesmos valores, mesmo que temporariamente e, por isso, é um exercício de humildade e empatia. A ausência de humildade e o orgulho nos faz sofrer e causar sofrimentos sempre que avaliamos ou somos avaliados, não importa se bem ou mal. Então, combater as fortificações o ego, que nos transformam em seres invencíveis e perfeitos, nos ajudaria a tecer e a receber críticas de uma forma mais madura, mais caridosa e humilde e, quem sabe, tomarmos providências para nos melhorar. Talvez, dessa forma, recolocaríamos no vocábulo "críticar" a sua tão bela e útil dualidade que, entre o bem e o mal, nos ajuda a chegar, sempre, num lugar melhor.

sexta-feira, 12 de agosto de 2016

Quando o nome não importa

E se eu estiver errado? E se não existir nada disso em que acredito: Deus, Reencarnação, um sentido e um motivo pra tudo? E se for apenas o acaso, uma confluência de fatores aleatórios? É o que às vezes me perguntam e que, por exercício filosófico, também me pergunto de tempos em tempos.

Desde sempre tenta-se provar a existência de Deus. Vejo, semanalmente, circulando pela internet, várias matérias, estudos científicos ou não, sobre esse tema. Alguns comprovam a existência, outros comprovam a inexistência e, outros tantos, são inconclusivos. São, mesmo, desnecessários.

Então vamos, por exercício, imaginar um Universo sem Deus, sem causa e sem objetivo. Um universo cujas relações sejam resultado de encontros e desencontros, equilíbrio e desequilíbrio ao acaso, onde as questões materiais são as únicas existentes.

Sabemos ser, o Universo, extremamente equilibrado, e isso científico. Já vi estudos dizendo que se houvesse uma diferença milimétrica no coeficiente de atração gravitacional – ou seja, na força que atrai e mantém nossas as moléculas unidas –, tanto pra mais quanto pra menos, tudo entraria em colapso e nenhum tipo do que chamamos de "matéria" conseguiria existir.

Portanto, equilíbrio me parece ser a palavra chave do Universo. E esse equilíbrio milimétrico pode ser observado em tudo. Na natureza, em tudo o que nos cerca, todos os minerais, fauna e flora se equilibram e se complementam na exata necessidade e possibilidade de cada um. Não vemos animais irem à caça sem fome, e se atacam é por necessidade imperiosa de manter-se vivo, jamais por esporte ou diversão. Uma árvore nunca acumula seus frutos só para si, pelo contrário! Ela oferece, além do alimento, abrigo, até mesmo praqueles que a destroem, como insetos ou humanos.

Notamos, então, que tudo o que existe se sustenta entre si e, se houvesse Deus no Universo que analisamos, diríamos que tudo se conecta de uma forma inteligente. Mas, inteligência depende de algum tipo de ente para se manifestar e, não o havendo este ente, chamaremos essa relação de dinâmica e equilibrada. 

Também sabemos que todo desequilíbrio nessa equação universal vem de um único fator: a ação humana. Nós, desavisados de que somos parte desse sistema, agimos como desconectados dele, criando desequilíbrios naturais e climáticos, pragas, epidemias e outras coisas do gênero e que nos trazem sofrimento. Ora, se somos parte do sistema, feitos da mesma matéria, através das mesmas "leis da física", o que nos permitiria agir sem considerar tais "leis"?

Matamos e nos alimentamos acima da necessidade; acumulamos nossos frutos até que nossos galhos se quebrarem; ingerimos veneno diariamente; vivemos a primavera durante inverno, o dia durante a noite, a vida na morte, a morte na vida. E nos achamos no direito de reclamar da dor, único resultado possível da nossa inconsequência.

Atração, caridade, progresso e amor são algumas das várias regras evidentes na natureza e a simples lógica sugere respeitá-las, independente do que as tenha definido, seja o acaso, o caos, o cosmo, a natureza ou, até mesmo, Deus.

sexta-feira, 5 de agosto de 2016

Você mudou muito?

Vagava pela internet quando apitou o Facebook. Era uma pergunta: "você mudou muito?". Tão clara e objetiva mas, nos primeiros segundos, espantei-me por não saber a resposta. O outro lado esclarece que, lendo meus textos, me percebeu diferente.

Lembrei-me de como eu era, há anos atrás, quando nos encontramos pela última vez. Lembrei-me de como eu era o ano passado, e me vi agora, como estou. É, eu havia mudado, mas não tinha percebido que a mudança interior já estava se mostrando ao exterior. E um exterior distante, pois quem percebeu essa mudança mora na Alemanha. Devo ter mudado bastante mesmo!

Finalmente consegui a resposta e, com convicção, respondi: "Sim, mudei muito". E como foi bom poder responder isso! Imaginei a tristeza e a frustração se a resposta fosse um "mudei nada! Continuo na mesma vida chata de sempre". Que alívio! Que bom que eu mudei!

Então passei os dias seguintes tentando me lembrar quando essa difícil e prazerosa jornada pela mudança começou. Cheguei até 1994, quando eu tinha 14 anos de idade e, espantado com a "vida adulta" que meus colegas já viviam, comentei para um amigo: "Me sinto atrasado vendo eles fazendo todas essas coisas que eu ainda não faço”. E a resposta que esse amigo me deu - os amigos, sempre eles! - subverteu, pela primeira vez, a realidade à minha frente: "E quem disse que é você o atrasado? E se forem eles os adiantados?".

De queixo caído, com o cérebro faiscando como nunca, senti, pela primeira vez, que somos nós que significamos as coisas e não o contrário. Aceitar a vida, passivamente, sem qualquer processo crítico é criar um calabouço para si mesmo. Rompi, naquele momento, os grilhões e aceitei o chamado da consciência.

Embarquei numa aventura em busca da felicidade, da verdade das coisas, do auto-questionamento, auto-conhecimento e auto-superação, tão ou mais emocionante quanto a saga de um Hobbit pela Terra Média ou a de um jovem bruxo britânico. É uma jornada sem mapa, cujo caminho a seguir é revelado durante um percurso cheio de enfrentamentos interiores e exteriores, com altos e baixos, armadilhas, cativeiros e redenções, como em toda boa aventura.

Mas não há jornada se há medo, e não há vivencia sem erros. Se há um fim, existe um começo e, principalmente, um meio, um caminho, um processo. Desde aquele início, em 1994, já andei por vários caminhos diferentes, montando acampamento em lugares que é melhor nem mencionar, de tão horripilantes. Mas o desconforto que ali encontrava me fazia mudar, seguir adiante, para qualquer outro lugar, se melhor ou pior, não importava, desde que diferente. Importava era tentar algo melhor.

E a cada novo caminho, a cada novo lugar visitado, uma nova paisagem se agrega e traz, melhor do que respostas, mais perguntas, mais fome, mais sede, mais motivos para seguir. Ser perseverante é uma virtude essencial para o aventureiro nesse tipo de peregrinação. Que por ser longa, possivelmente eterna, não haverá vitória apenas ao final, mas a cada passo dado, a cada vez que a resposta for "sim" para quando te perguntarem se você mudou. E você, mudou muito?