terça-feira, 27 de janeiro de 2015

Filme : A Última Gargalhada [1924, Friedrich W. Murnau]



Era um homem orgulhoso de seu emprego. Executava cada tarefa com o prazer e a desenvoltura de um mestre em sua função. Sentia-se tão imponente em seu uniforme que fazia questão de voltar pra casa nele vestido. Andava altivo, esbanjava orgulho; era admirado por sua família e pelos vizinhos. Sentia-se a melhor pessoa do mundo.

Sentia vergonha de seu emprego, voltava para casa escondido. Ninguém poderia vê-lo daquele jeito, com aquela roupa vulgar que vestia. Não conseguiu se esconder por muito tempo, descobriram-no. Humilhado e ridicularizado por sua família e conhecidos, odiava sua vida. Sentia-se a pessoa mais desprezível do mundo.

Apesar de não parecer, os dois parágrafos acima contam a história da mesma pessoa e de como ela convive com o repentino destroçar de seus sonhos e a impossível manutenção das aparências. Agonia e alivio, fartura e miséria, inferno e paraíso. São os contrapontos da vida que dão as “cores” em “A Última Gargalhada” (The Last Laugh, 1924) – ou em Alemão “Der Letzte Mann” (“O Ultimo Homem”) –, filme que consta na minha lista de preferidos da vida.

Dirigido por Friedrich W. Murnau – que também dirigiu o clássico Nosferatu, em 1922 –, "A Ultima Gargalhada" é um filme mudo e em branco e preto, mas com uma carga emocional tão grande que estes detalhes apenas realçam um trabalho genial de direção, atuação e produção, o que faz desta película um ícone não só do Expressionismo Alemão, mas do cinema mundial.

A Escola Expressionista Alemã foi um movimento artístico de vanguarda, um fenômeno cultural que no final do século XIX e início do século XX, foi catalizado por todas as formas de arte da Alemanha. Sua estética era baseada mais na emoção do que na razão, suas características mais marcantes eram os ângulos acentuados; cores contrastantes como verde, vermelho, amarelo e preto (isso quando havia cores); maquiagem pesada que muitas vezes descaracterizava os traços humanos dos personagens, outras vezes os enfatizava, revelando de forma mais marcante (expressiva) as suas características subjetivas. No cinema abusava-se dos contornos sombrios e dos contrastes marcantes entre o negro e o branco. Os autores expressavam uma visualidade subjetiva, mórbida e dramática. A realidade, o fato concreto e seus detalhes, eram deixados em segundo plano em detrimento do sentimento que o artista tinha em relação a esse fato. O Expressionismo era o contra-ponto ao Impressionismo, este sim acadêmico, calcado na racionalização da realidade, inspirado na nova coqueluche da humanidade: o método científico.




O filme discute civilização como escrava da aparência. A falsa posição social adquirida pelo personagem principal (interpretado po Emil Jannings) através do uniforme que veste, seja na portaria ou no banheiro do Hotel Atlantic, pode esconder, não o exime da verdade de que ele jamais deixa de ser apenas mais um proletário. A farsa social desmorona frente à descoberta de seu rebaixamento de função por seus vizinhos hipócritas e mais miseráveis ainda, que o atacam e desmoralizam por ele simbolizar tudo o eles temem se tornar ou já são e não suportam ver.

Outro detalhe interessante a ser notado é que as ótimas interpretações dos atores somadas à bela fotografia expressionista, escancaram o psicológico dos personagens a ponto de tornar obsoletos os tradicionais cartões com os diálogos escritos entre as cenas – e nem se nota falta deles. Bem, para não dizer que não há cartões, eles aparecem apenas duas vezes: uma é a carta que rebaixa o porteiro de posição, a outra é para anunciar o epílogo.

Este filme foi o primeiro a utilizar uma câmera portátil, chancelando o rótulo de inovador de Murnau, o diretor. Logo na primeira cena do filme o cinegrafista amarra a câmera no peito e faz a tomada andando de bicicleta pelo lobby do hotel. Só não se assustem com o final nada inovador, meio novela das oito: o final original (e trágico) idealizado pelo diretor e pelo roteirista foi alterado a pedido dos executivos do estúdio, que preferiam um final feliz. Portanto não culpem os gênios expressionistas por este escorregão.

Enfim, “A Ultima Gargalhada” não é simplesmente uma boa história provocadora de reflexões sociais ou algumas lágrimas, é muito mais, é um grande exemplar do cinema de arte, contestador e inventivo, que nos leva além do prazer de assistir a um ótimo filme.



Aproveite e assista ao filme, na íntegra:















Originalmente publicado no Culturanja de 9 de abril de 2008. Revisada e reeditada para esta publicação.

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

Arthur Rimbaud : Poesia Completa e Correspondência

Revirando o baú, encontrei uma antiga resenha que escrevi sobre dois deliciosos volumes que li no final de 2006: Rimbaud Complete (Poesias Completas de Rimbaud) e I Promisse to Be Good : The Letters of Rimbaud (Prometo Ser Bom : As Cartas de Rimbaud). Livros muito bem traduzidos do Francês para o Inglês por Wyatt Mason, estudioso e especialista em Rimbaud.


Capas dos livros Rimbaud Complete e I promisse to be good : The Letters of Rimbaud, de Wyatt Mason


Posso dizer que estes livros salvaram minha pele – ou melhor, minha alma – naqueles tempos longe da família, solto no mundo, onde qualquer vida era possível e eu ainda não sabia muito bem qual delas eu queria viver. E não só pela gratidão, mas também pelo prazer que tive em ler estes livros, resolvi revisar e atualizar a resenha antiga e republicá-la. Adicionei mais informações sobre as traduções dos dois volumes em português (traduções de Ivo Barroso, que já tive o prazer de ler alguns trechos) e tive uma ótima surpresa, descobri que, no Brasil, publicou-se um outro volume além dos dois que eu já conhecia, também traduzido pelo Ivo Barroso e dedicado exclusivamente à Prosa Poética do Rimbaud (Uma Temporada no Inferno; Iluminações; Um Coração Sob a Sotaina; Os Desertos do Amor; Prosas Evangélicas).



Sem mais delongas, à resenha!

Arthur Rimbaud na juventude.

Revolucionar a poesia francesa dos 16 aos 21 anos de idade e morrer doente aos quase 37, após vários anos desbravando o norte da África como empreiteiro e comerciante de armas. Esse é o resumo, superficialíssimo da vida de Jean-Nicolas-Arthur Rimbaud, nascido em 20 de outubro de 1854, na pequena cidade de Charleville, que fica na região de Champagne-Ardene, noroeste da França, fazendo fronteira com a Bélgica. Interessante é a bandeira dessa província: dois corações, um verde e um amarelo, entrelaçados – brasileiríssimo.

Interessantemente a influência deste jovem poeta, na época apelidado até de L'enfant Shakespeare (o jovem Shakespeare) não morreu junto com ele, pelo contrario, continua crescendo, e. até hoje muitos – não só poetas – conclamam Rimbaud como uma importante influência. Nesse time estão pessoas do quilate de Vinícius de Moraes; os Simbolistas e Surrealistas quase todos; Cazuza; Jim Morrisson e outros tantos Beatniks como Jack Kerouac, William S. Burroughs e Allen Ginsberg, além de uma infinidade de artistas de outras áreas. A ideologia libertária da juventude revolucionária das décadas de 1960 e 1970 encontrou respaldo na poesia e na própria vida de Rimbaud. Enfim, o conceito de liberdade na cultura ocidental tem um toque desse revolucionário poeta menino.

Apesar de várias poesias esparsas já existirem em português, não havia nada tão meticuloso relacionado a ele no pais. O trabalho do tradutor e também poeta Ivo Barroso, estudioso de Rimbaud desde a década de 1950 quando publicou a tradução do “Soneto das Vogais” no suplemento dominical do Jornal do Brasil. Já na década de 1970, publicou a tradução de “Une Saison En Enfer” (Uma Temporada no Inferno) e finalmente, em 1994, publicou, pela Topbooks, o primeiro volume da coleção sobre a qual falamos: a Poesia Completa de Arthur Rimbaud, em edição bilíngüe (Francês-Português).

Neste primeiro volume, é possível perceber a preocupação do tradutor em preservar a métrica, o ritmo, a rima e o máximo possível das sutilezas dos versos e da personalidade do poeta francês. Afinal, todo bom leitor sabe que uma tradução literária é muito mais do que só transcodificar uma língua em outra e, se mal feita, pode destruir tudo o que o autor original tem de brilhante e transformar o texto de um gênio em um monte tedioso de palavras empilhadas. Enfim, para respeitar a essência da poesia de Rimbaud, Ivo dedicou muitos anos integralmente à esta tradução, garimpando livros mundo afora, variantes, dados biográficos de Rimbaud e de pessoas que o circundavam. Nesse livro se percebe bem a foça das idéias e versos que contaminaram o espírito de milhares de outros poetas e artistas posteriores à Rimbaud. Aqui vai um exemplo:

Le Bateau Ivre

Comme je descendais des Fleuves impassibles,
Je ne me sentis plus guidé par les haleurs:
De Peaux-Rouges criards les avaient pris pour cibles
Les ayant cloués nus aux poteaux de couleurs.

J' étais insoucieux de tous les équipages,
Porteur de blés flamands ou de cotons anglais.
Quand avec mes haleurs ont fini ces tapages
Les Fleuves m'ont laissé descendre où je voulais.

...................................

Plus douce qu'aux enfants la chair des pommes sures,
L'eau verte pénétra ma coque de sapin
Et des taches de vins bleus et des vomissures
Me lava, dispersant gouvernail et grappin.

Et dès lors, je me suis baigné dans le Poème
De la Mer, infusé d'astres , et lactescent,
Dévorant les azurs verts; où, flottaison blême
Et ravie, un noyé pensif parfois descend;

...................................

Si je désire une eau d'Europe, c'est la flache
Noire et froide où vers le créspuscule embaumé
Un enfant accroupi plein de tristesses , lâche
Un bateau frêle comme un papillon de mai.

Je ne puis plus, baigné de vos langueurs, ô lames,
Enlever leur sillage aux porteurs de cotons,
Ni traverser l'orgueil des drapeaux et des flammes,
Ni nager sous les yeux horribles des pontons.

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O Barco Ébrio

Como descesse ao léu nos Rios impassíveis,
Não me sentia mais atado aos sirgadores;
Tomaram-nos por alvo os Índios irascíveis,
Depois de atá-los nus em postes multicores.

Estava indiferente às minhas equipagens,
Fossem trigo flamengo ou algodão inglês.
Quando morreu com a gente a grita dos selvagens,
Pelos Rios segui, liberto desta vez.

...................................

Mais doce que ao menino os frutos não maduros,
A água verde entranhou-se em meu madeiro, e então
De azuis manchas de vinho e vômitos escuros
Lavou-me, dispersando a fateixa e o timão.

Eis que a partir daí eu me banhei no Poema
Do Mar que, latescente e infuso de astros, traga
O verde-azul, por onde, aparição extrema
E lívida, um cadáver pensativo vaga;

...................................

Se há na Europa uma água a que eu aspire, é a mansa,
Fria e escura poça, ao crepúsculo em desmaio,
A que um menino chega e tristemente lança
Um barco frágil como a borboleta em maio.

Não posso mais, banhado em teu langor, ó vagas,
A esteira perseguir dos barcos de algodões,
Nem fender a altivez das flâmulas pressagas,
Nem vogar sob a vista horrível dos pontões."


Neste poema (parcialmente citado), Rimbaud cria a figura do barco louco, embriagado de infinito, navegando ao acaso, rumando ao desconhecido. O barco é, na verdade, uma metáfora para si mesmo, navegando entre as incerteza da vida.

Incertezas e dilemas que podem ser examinadas em detalhes e entendidas num outro volume, o terceiro da trilogia de Ivo Barroso (O segundo é o dedicado exclusivamente à Prosa Poética de Rimbaud). Em "Arthur Rimbaud - Correspondência", publicado em 2009, também pela Topbooks, encontramos as cartas que Arthur Rimbaud mandava para sua família e amigos. As cartas datam do início de 1870 até 09 de novembro de 1891, um dia antes de sua morte, doente de tifo, sem uma perna, num hospital em Marselha, na França, acompanhado da família, logo depois de completar 37 anos de idade.

Quando iniciou sua correspondência, em 1870, Rimbaud tinha apenas 16 anos, e em suas cartas discutia a poesia em profundidade e a coerência entre a vida do poeta e sua obra. São cartas maravilhosas, onde se percebe a genialidade do garoto. É nessa fase que ele inicia sua relação homossexual e turbulenta com Paul Verlaine, também um grande poeta francês, com o qual vai morar em Paris. Também é possível ler, em várias das cartas, versões de alguns poemas ainda inacabados, para os quais Arthur pedia sugestões a outros amigos poetas. Estas discussões estéticas, filosóficas, simbólicas, e até mesmo questionando a qualidade da literatura que se fazia na França, proporcionam ao leitor de suas cartas a chave para decodificar de forma mais correta os símbolos e imagens de seus versos. Veja um trecho da famosa "Carta do Vidente" (15 de Maio de 1871), texto onde definia o seu método de viver e criar sua poesia, e que certamente influenciou várias gerações de "poetas malditos":

(…) um longo, imenso e racional desregramento de todos os sentidos. Todas as formas de amor, de sofrimento, de loucura; buscar a si, esgotar em si mesmo todos os venenos, a fim de só lhes reter a quintessência. Inefável tortura para a qual se necessita toda a fé, toda a força sobre-humana, e pela qual o poeta se torna o grande enfermo, o grande criminoso, o grande maldito, — e o Sábio supremo! — pois alcança o insabido.

Interessante é ver a mudança no assunto das cartas a partir de 1875, quando Arthur, durante uma longa caminhada pela Europa (sim, à pé mesmo!) começa a se desinteressar pela poesia e, progressivamente, a correspondência do poeta que decretou a necessidade de se “reinventar o amor” torna-se a correspondência de um homem comum, destinada a sua família distante. Nesta segunda fase de sua vida não há mais poesia, apenas pedidos de livros de agrimensura, dicionários de árabe, reclamações sobre o calor infernal da região e demais aspectos do choque cultural que sofria. Mas mesmo em meio a tantos assuntos cotidianos, ainda se vê muita reflexão sobre o que efetivamente é a vida e pra que ela serve – uma constante em Rimbaud. São trechos esparsos, mas tão envolventes quanto seus versos da juventude, que exalavam rebeldia, agonia e erotismo.

Arthur Rimbaud, em idade adulta.
Foto tirada no terraço do Hotel Universo, em Áden, Iêmen.

Acompanhamos agora Rimbaud, já não mais poeta, em sua jornada – quase uma fuga de tudo e todos –, pelo norte da África, empresário, construtor, mercador de armas, e nunca satisfeito com onde estava ou com o que estava fazendo, reflexo de uma alma inquieta, que cada vez mais se sentia desconectada de tudo e, solta no universo, compreendia verdadeiramente não pertencer a lugar algum.


Poesia Completa
Correspondência
Prosa Poética
A trilogia 'Rimbaudniana' de Ivo Barroso.


Seja para simples deleite em boa poesia ou por uma busca mais profunda sobre a essência da alma; seja para buscar inspiração pra tocar a vida em frente ou criar coragem para mudá-la radicalmente; encontrará nestes volumes, na vida de Arthur Rimbaud (poeta ou não), inspiração de sobra. Como já aconteceu e ainda acontecerá com muita gente.

sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Blog Ré Menor : Resenha do OPPnS

Conheci a Êrica Blanc durante durante alguns dias que passei em Porto Velho (RO), onde estava para alguns shows com Nevilton e Bruno Souto, atrações no Festival Casarão. E, de repente, estávamos conversando sobre um trilhão de livros e coisas literárias em geral. Fiquei muito feliz em saber que o seu interesse por literatura era genuíno e profundo, a ponto dela ter um blog, o Ré Menor, no qual resenha livros e trata de outros assuntos, que é mantido com muito carinho e profissionalismo, indicando a ótima jornalista que ela já é.

Tempos depois, vi uma resenha do meu livro publicada no Ré Menor e fiquei muito feliz. 
Obrigado, Êrica!

Republiquei aqui:

Li, gostei, resenhei: O pretérito presente do subjetivo.


OPreteritoPresenteNoSubjetivo-CAPAvermelhoLivro: O pretérito presente do subjuntivo;
Autor: Tiago Lobão;
Editora: Livro independente;
Páginas: 44;
Sinopse: Tiago Lobão, que também é músico, decidiu oficializar sua carreira literária lançando este livro, para o qual selecionou 27 poemas seus, escritos entre 1997 e 2009. São poemas de juventude; da procura por respostas, por soluções às frustrações e dores que, naqueles tempos, pareciam imensas e eternas. Hoje, feliz por estar errado, e reconhecendo que sem desilusões vencidas não há ser humano completo, o autor celebra e expõe, neste volume, suas melhores cicatrizes.
nota-musical-1

A verdade sobre as cidades
“Somaram-se em sonhos os casais
Casas e vilas criaram
Uniram-se as vilas em cidades
Cidades que nos separam.”
“O Pretérito presente no subjetivo”, produção independente e primeiro livro, publicado, de Tiago Lobão. Você deve estar pensando que “produção independente” lembra ter filhos. Mas o que são os livros, se não filhos para seus criadores?! Devo dizer, com alegria, que o autor cuidou muito bem deste seu primeiro filho, escolhendo com cuidado e maestria cada uma de suas vinte e sete poesias publicadas em “O pretérito presente no subjetivo”. Ao ganhar este livro, a carta que o acompanhou dizia: “Que os poemas te agradem (apesar de melancólicos)”, devo esclarecer, como leitora assídua que sou, que as poesias encontradas neste livro falam, parafraseando o autor, de saudade, de coração partido, de amor, de dor, mas que sua melancolia não apaga o brilho de sua escrita, nem de longe! E, diante disso, só posso torcer, ansiosamente, por mais livros, deliciosamente melancólicos, de Tiago Lobão. Ah! E deseja-lo boa sorte, é claro!
E se você ficou super afim de acompanhar as coisas escritas pelo Tiago, basta acessar aqui, o seu site oficial!  Nesse site você também consegue comprar o livro ou em shows do Nevilton. E tem coisa melhor que ler ouvindo boas músicas?

fonte : http://www.remenor.com.br/li-gostei-resenhei-o-preterito-presente-do-subjuntivo/


terça-feira, 13 de janeiro de 2015

Da Abstinência

"Vai chegar um tempo no qual sentirá minha falta. Uma saudade imensa que o fará me procurar novamente. Passará noites em claro pensando em mim. Desesperado, vai chorar. Daí em diante perderá a saúde e a cabeça. E, quando perceber, já estará novamente nos meus braços, me pedindo pra voltar."

É o que, também, diz a Morte ao entregar um ser à Vida.

terça-feira, 6 de janeiro de 2015

Vizinhos


Essa história é verídica, aconteceu com um conhecido meu. Foi há tempos atrás, quando ele ainda era um garotinho de apenas uma década de vida e ainda morava com seus pais na Rua Aquidaban, perto do Ginásio de Esportes e do Cemitério, em Umuarama, interior do Paraná. Estavam reformando a casa. Era uma reforma grande, portanto, os quatro membros de sua família tiveram que passar aquele mês morando na edícula, nos fundos do quintal. A edícula dividia uma das paredes com a da casa do vizinho dos fundos. 

Tudo transcorreu tranquilamente durante os primeiros dias, até que, em uma noite, já durante alta madrugada, os vizinhos resolveram mudar a arrumação do quarto. Era uma barulheira de móveis sendo arrastados de um canto para o outro que seguiu até quase o sol nascer, destruindo qualquer esperança de um sono tranqüilo e revigorante para a família.Se fosse apenas por uma noite, não haveria mal algum.Porém, o barulho da arrastação de móveis e sonoplastias diversas começou a ficar rotineiro e atrapalhar demais a paz e o sono da família, que já tinha que conviver com o barulho e poeirada reforma de sua casa durante o dia todo. 

Depois de vários dias cultivando olheiras, já cansada com a indecisão dos vizinhos com a nova arrumação do quarto que parecia não terminar nunca, a mãe do meu amigo aproveitou uma tarde mais livre e foi lá pedir alguma providência. Ao chegar em frente ao portão do vizinho barulhento, percebeu que ali não morava ninguém, era a sede da ACESF, uma autarquia do município de Umuarama cuja sigla significa Administração de Cemitérios e Serviços Funerários, e não deixa mistério algum sobre suas funções.

Naquele tempo, a ACESF era na mesma Avenida Gov. Parigot de Souza, mas numa casinha pequena e branca, com uma lua em alto relevo sobre a porta da frente. Lá, no quarto dos fundos, era o lugar onde se estocava os caixões vazios e se preparava os cadáveres que chegavam do IML para que pudessem ser velados e enterrados no Cemitério Municipal, do outro lado da rua.

“Tudo bem que serviço funerário não tem hora pra acontecer, mas pelo menos deviam fazer menos barulho pela madrugada!” – pensou consigo a mãe do amigo. E assim que foi atendida pelo funcionário desabafou polidamente:

- Oi, eu sou sua vizinha dos fundos e nosso quarto divide a mesma parede com o quarto dos fundos de vocês. Sei que não tem hora pra se morrer e nem pra vocês trabalharem, mas o pessoal que vem pro turno da noite tem feito muito barulho durante a madrugada inteira... arrastando móveis pra lá, coisas pra cá. Isso tem atrapalhado muito o sono da minha família. O funcionário, meio espantado, porém, bastante solícito, respondeu:

- Senhora, peço desculpas pelo barulho, mas infelizmente não podemos fazer muita coisa. Aqui não existe turno da noite, nós só trabalhamos até as 18 horas.