sexta-feira, 19 de novembro de 2021

Eu fui trezentos


Desci exausto às galerias do Metrô Paulistano, atravessei suas catracas. Caminhei pelos corredores do subterrâneo como se andasse pelas minhas próprias artérias. Acomodei-me num dos bancos do vagão, ainda vazio, quando faltavam poucos minutos para as nove da noite.

Olhando pela janela do trem, assistia à multidão que ia e vinha entre vagões e corredores. Via cada pessoa, cada uma de todas elas, sem exceção. E as sentia, profundamente. Foi ali que me fez sentido. Naquele momento, entendi o Mario de Andrade, que era trezentos! "Eu sou trezentos, trezentos-e-cincoenta", declamara, Mário, num poema. Eu, naquele momento, também havia me tornado plural. Não sei se trezentos, trezentos-e-cincoenta, se mais, se menos. Mas eu era cada uma daquelas centenas de pessoas que transitavam pela minha retina. Me reconhecia em todas elas e as reconhecia todas em mim.

Era eu tranquilo; era eu com medo; eu atrasado; eu com raiva; eu com fome; eu me amando; eu me odiando; eu grisalho; eu calvo; eu de longos e fartos cabelos; eu atrasado pro trabalho, indo; eu esgotado pelo trabalho findo; eu voltando pra casa; eu incerto se ainda haveria casa ao voltar; eu esperançoso, indo a um encontro num bar; eu frustrado pelos desencontros do amar; era eu radiante, energizado; era eu exausto, quase defunto.

Quando, de volta à superfície da megalópole, enquanto caminhava pela Avenida Paulista eu já era milhares, centenas de milhares. Era eu executivo; eu mendigo; eu milionário; eu estudante; eu manifestante; eu desempregado; eu comerciante; eu artista; eu ciclista. Era eu motorista, eu passageiro; nos carros, nos ônibus, nos aviões invisíveis que cruzam o céu paulistano, nos helicópteros ruidosos sobrevoando o intenso Bela Vista. Era eu atleta noturno; era eu vítima de assalto; era eu assaltando mais uma vítima; era eu crente; eu descrente; eu ateu ou agnóstico; eu pontífice ou prostituto, do mundo ou de Deus.

Elevei-me às alturas, e pela janela do apartamento, por sobre a cidade, eu já me espalhava por além de onde a vista alcançava. Eu já era dezenas de milhões. Homem, mulher, ambos, nenhum dos dois; satisfeito; insatisfeito; sorrindo ou chorando; com saudades ou acalentando; vivendo, existindo, nascendo ou morrendo. Eu era todos em todos os lugares e todos nós em mim. A singular pluralidade de cada um em todos nós.

Eu fui trezentos, fui trezentos-e-cincoenta.
E agora, eu sou, no mínimo, sete bilhões e oitocentos!
Para os quais minha alma servirá de abrigo.


Foto por : Tiago Inforzato