sexta-feira, 23 de junho de 2017

Refazendo as malas

Quem viaja bastante sabe como fazer as malas é chato e difícil. Mas, também, sabe que uma mala bem feita, a menor possível, pode transformar a viagem de inferno a paraíso. Na vida, que é viagem, tudo é bagagem.

Lembro-me da infância com doçura. Eu e muita gente, sem dúvidas. Posso até sentir novamente a leveza daqueles dias, certamente geradas pela presença poderosa e segura do meu pai e de minha mãe, infalíveis. Tudo era sempre mágico e interessante e a mochila das experiências começa a ser enchida.

Passos além, na juventude adolescente, ainda crianças e pensando já sermos adultos, nos afastamos  alguns mais, outros menos  da segurança parental, e os dias pareciam ser os mais pesados de toda história humana e para sempre. Os revezes nos alcançam e as soluções estão cada vez mais em nossas mãos ainda inabilidosas. Sofremos, mas agregamos algum conhecimento de vida circulando entre ideias, processos e pessoas, aumentando o conteúdo da nossa mochila de viagem.

E o tempo continua a correr, e nós a envelhecer, ou melhor, amadurecer. Ainda estou longe de vestir as chinelas da senilidade e me despedir dos últimos resquícios de vigor, mas daqui, mais de perto dos 40 do que dos 20, com alguma experiência de vida a mais e capacidade de observação, mesmo que inconsciente, as ideias mudaram (inclusive na grafia), assim também os paradigmas de tudo, ou quase tudo, como os de qualidade, de bom e mal, de saúde e doença, de necessário e desnecessário. A mochila está cheia de souveniers da vida, está imensa e pesada, nada fácil de carregá-la, ainda mais para alguém, que apesar de insistir no contrário, já não é mais tão jovem.

Apesar da imagem física do envelhecimento que utilizei, o tempo aqui discutido não é o cronológico nem o biológico, mas o que se desenvolve na consciência. E nessa escala de tempo, que varia em cada um de nós, chegam momentos, sempre oportunos, quer gostemos ou não, de selecionarmos o que levamos a frente e o que fica pelo caminho. Aprender a manter o essencial, e apenas ele, evita carregarmos peso demais, que nos vai atrapalhar durante a próxima fase da caminhada. Então, antes escolher, em tempo oportuno, com calma, o que levar consigo, do que ter que se desfazer de toda a imensa e pesada mochila no meio de uma difícil escalada.

Quanto compôs "Monte Castelo", Renato Russo utilizou o Soneto V, de Luís de Camões, e trechos da primeira carta de Paulo aos Corintios. Nesta carta de Paulo há um trecho, que não foi utilizado na canção, que pode sintetizar bem a ideia desse necessário amadurecer, da necessidade de selecionar melhor o que se leva adiante, e adaptar-se às novas realidades que se apresentam, minimizando sofrimentos e facilitando a peregrinação pela vida. E com ele terminamos: "Quando eu era criança, falava como criança, pensava como criança, raciocinava como criança. Desde que me tornei homem, eliminei as coisas de criança. (1 Corintios, 13:11)".


quinta-feira, 15 de junho de 2017

Documentário : Chasing Trane [2016, John Scheinfeld]




"O que você faz é o motivo para você estar aqui". Essa frase soou feito uma bomba, mais uma que o contato com a vida e obra de John Coltrane me trouxe. Não me lembro quem disse, acho que foi o Jimmy Heath, durante uma de suas falas no documentário Chasing Trane, de John Scheinfeld.

Documentário carinhosamente criado e montado, que explicita ainda mais o processo de vida e criação de John Coltrane, que se misturam. Na verdade, são a mesma coisa. Na vida e na obra, Trane usa a música como instrumento de transformação, de superação do humano, em busca do sublime, do inefável; reflete sobre a responsabilidade do artista sobre o que ele transmite.

Curando-se a si mesmo pela música, e dando vazão à voz de seu espírito sempre pacífico, saiu dos labirintos dos vícios ao infinito de possibilidades que uma consciência integral permite. Quis curar o mundo. Tanto que, mesmo chegando no ápice da integração entre música e sentimento, com sua obra prima "A Love Supreme" (1965), não se deu por satisfeito e foi além, dando passos que poucos, ou até mesmo ninguém foi capaz de seguir.




Na emoção do reencontro com esta figura tão elevada, recupero uma publicação antiga, mas que pode dar alguma dimensão, se é que isso é possível, à transcendência de John Coltrane. Elevem-se.