sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Ruídos Surdos em Paris



O toc-toc surdo de sua bengala ecoava pelas vielas, ainda úmidas de chuva, da Ile Saint-Louis, onde morava em Paris. Caminhava lentamente aquela noite, seus sapatos em couro preto ajudavam no soar rítmico dos passos. Vestia paletó e colete escuros, camisa clara, sem gravata e por cima um grande sobretudo negro. Era inverno. O cachecol grafite, com detalhes em cinza, preto e vermelho escuro lhe aquecia o pescoço e o ajudava a manter uma postura ereta, desafiando o vento frio daquela noite. O Fedora cinza-escuro protegia sua cabeça da leve, mas vigorosa garoa que caia e respingava em seus óculos retangulares de aro fino. Seus olhos eram duas esferas mortas. Toc-toc, toc-toc. Lentamente aquela figura elegante e soturna, com sua barba farta e grisalha caminhava para casa. Havia um ar sóbrio em seu rosto, uma tristeza antiga, quase hostil, mas o andar e a postura eram altivos.

Chegara em casa. Número 2 da Rue Boutarel, esquina com a Quai d’Orleans, defronte ao Rio Sena. Tirou a chave do bolso, abriu a porta de madeira, entrou no prédio e continuou sua caminhada pelo hall de entrada, iluminado por abajures à meia luz. Toc-toc-toc. Subiu as escadas, manteve a feição grave mas desfez-se da postura elegante. Curvou-se. Fixou os olhos nos detalhes do piso. Seu apartamento era no terceiro andar.

De sua janela podia ver os fundos da Catedral de Notre-Dame, que fica do outro lado do Sena, na Ile De La Cité, atravessando a ponte Saint-Louis, também visível de sua janela. Havia alguns anos que morava por lá e sempre pensava sobre o tanto de barbaridades que aconteceram naqueles lindos jardins, em nome de religiões e algumas crenças bastante estúpidas. Aquela beleza toda só podia ser proposital, pra esconder, ajudar a esquecer todas aquelas atrocidades de outrora. Pena não poder fazer o mesmo em sua memória ou coração.

Já eram duas da manhã e parecia que eram quatro. Estava esgotado. O melhor que poderia fazer era tomar um banho quente.

Após o banho vestiu seu pijama mais confortável e sentou em sua escrivaninha. Armou-se de caneta, papel e pôs-se a escrever uma carta. Foram várias páginas. Deu uma volta pelo apartamento e certificou-se de que tudo estava no devido lugar, não suportava bagunça. Acendeu um Cohiba e bebericou uma taça de vinho.

Então foi até o guarda-roupas e pegou seu revólver.


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Revisado para esta publicação.
Originalmente publicado no Cultura & Arte de 14.09.2008.

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

A História de Onço (ou Sobre o que muda; e o que não)

Desenho : Onça - por Waldomiro Neto
Morava no ermo, lá nos longes dos cafundós do interior, num dos poucos lugares onde "no meio do mato" ainda significa no meio do mato, mesmo. Criava umas galinhas, mas gostava mesmo era de caçar. As onças também adoravam suas galinhas.

Um dia, um filhote de onça resolveu rondar a casa. E foram vários dias com aquela criaturinha minúscula, que mal dava conta das galinhas, causando na vizinhança. E assim foi indo o filhote, se achegando... e se achegando... até que o ermitão se apegou e adotou o maldido - como o chamava até então.

Promovido de "ô peste arisca" pra "parte da família" - família composta, na realidade, só dele e do ermitão - o filhote era tratado como se pessoa fosse; como um filho mesmo, um amigão: bate-papo, carinho e tudo o mais. Cresceu. Cresceu muito, tanto que já não era mais possível criar galinhas no terreiro. Tornou-se, como diria o ermitão: "um belo dum onço, sô!"

Ser amigo-da-onça não soava nenhum pouco perigoso pro ermitão - que certamente nunca tinha ouvido essa expressão popular ou lido as tirinhas do Péricles. Pra ele, o onço era um amigo leal que o acompanhava nas caçadas. Muitas vezes até ajudava a encurralar a presa, ou encontrar o caminho de volta pra casa. E o safado estava aprendendo bem a arte da caça, "como se tivesse nascido pra isso!" Espantava-se o ermitão.

Passados alguns anos, Onço - nome oficializado por falta de um melhor - se tornou um bicho forte e já era o rei do pedaço ali na floresta, e orgulho do seu amigo ermitão. Aproveitando a moral que tinham nas redondezas, ambos saíram à caça, como de costume. Mas num momento de surpresa - pra toda a floresta inclusive -, Onço ataca o ermitão pelas cosas e o mata, no melhor estilo onça de ser, e vai embora, sumindo no mato pra sempre.

Ah, desavisado do ermitão! Deveria ter se lembrado que uma onça, não importa o que você pense, faça ou deseje, será sempre uma onça. E, inevitavelmente, fará o que onças fazem.


sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

O Jazz do Veríssimo. E o Meu.



Ler Veríssimo é sempre muito bom (o Luis Fernando, nesse caso específico. Mas em todos os outros casos, em geral, também é altamente recomendado o pai dele, o Erico). Estando você de bom ou de mau humor, sentado ou deitado, sozinho ou acompanhado, sóbrio ou de pilequinho e, se bobear, até de olho fechado! Não tem jeito de sair insatisfeito de um texto Luisfernandoverissimiano. Lê-se tão suave e naturalmente que, ao menos perceber, o livro já acabou. Então tomamos o cuidado de ler mais lento, aproveitando cada palavra, melhor, cada letra e... ao menos perceber, o livro acabou outra vez!

E esse novo, então? o Jazz. Num ato covarde e sem escrúpulos, o genial índio-velho-colorado (que além de escritor é saxofonista no Jazz6) conseguiu juntar três coisas que eu amo num mesmo livro: crônicas, ele mesmo e o Jazz. Pequeno, tem apenas 15 crônicas, também pequenas, no qual o autor conta sua relação com o estilo musical e de como histórias do Jazz se cruzam - ou não - com a sua vida. Li inteiro, rapidinho. Vou ler pela segunda vez, mas inspirado no tema, tomarei atitudes jazzisticas pra aumentar a duração e a diversão em cada texto. Assim como se faz na música, no meio da crônica vou abrir a rodada de improvisos: abro com um de referências intra e extra texto; depois vem o de idéias e interpretações aleatórias, meio semiótico; passando então por um inspirado solo de coçada de cabeça, arrumada de óculos... e só aí, depois de me divertir bastante, volto pro texto original e pro ponto final.

Fora a música em si, o Jazz tem uma característica que eu acho bem interessante: Esse movimento musical norte-americano-da-gema, surgiu e foi movido por dois elementos opostos de dinâmica social, da mesma forma como as pernas esquerda e direita movem os pedais de uma bicicleta e a leva sempre em frente. Nasceu da miscigenação racial e cultural inevitável, naquele caldeirão que era New Orleans no início do século XX, cheia de imigrantes brancos, negros, amarelos, azuis...; e teve como combustível - talvez o único que funcionaria tão bem, não se assustem os politicamente corretos -, a violenta segregação racial que vigorou até esses dias atrás - se é que não vigora até agora. Explico resumidamente: se não fosse gana dos brancos em superar os negros, e a dos negros em superar os brancos, a música não teria extrapolado seus limites e os gênios do estilo (Armstrong, Gershwin, Parker, Davis, Evans, Brubeck e outros tantos) não teriam sido desafiados e criado tão complexa e, ao mesmo tempo, tão livre forma de expressão musical.

Por ter a harmonização de opostos, a pluralidade e a contestação tão presentes em seu âmago, ao se espalhar pelos territórios norte-americanos, ao Jazz foram  se anexando, facilmente, fragmentos dos diversos Estados Unidos que encontrava. De repente, representava tanta gente e tanta coisa, que chegou a ser considerado o estilo musical oficial daquele país durante toda a primeira metade do séeculo XX. Discos de Jazz eram campeões de venda, programas de rádio de Jazz eram campeões de audiência, músicos de jazz eram as grandes estrelas pop do país, e não só da juventude, mas de todas idades, raças e classes sociais. Até que chegou o Roquenrou chutando a porta e remexendo os quadrís. Mas isso é outra história.

E pra finalizar a filosofada, o Jazz não foi só importante para nossos hermanos da Norteamérica, ele se espalhou pelo mundo e se adaptou facilmente à outras culturas. Na sua ânsia pela liberdade em todos os sentidos e pela superação de obstáculos (harmônicos ou da vida mesmo - vide biografias de jazzistas), criou novos estilos musicais, quebrou barreiras raciais e sexuais (muito antes do rock) e deixou sua marca indelével na história cultural da humanidade. E isso são muitas outras histórias mais.

Interessante é que o Jazz, esse pequeno livro (quase me esquecia do livro!) foi lançado apenas no formato digital, tecnologia que há alguns anos vem conquistando seu espaço no mundo, mas cujos e-readres (leitores digitais) só chegaram no Brasil, oficialmente, há poucos dias. A Editora Foglio disse que este livro fará parte de uma coleção de livros pequenos, de até 15 mil palavras, que não seriam viáveis no formato tradicional, de papel. Realmente, até que a coleção pode ser um bom teste pra esse novo mercado de e-books que, espero eu, cresça a ponto de ter livros realmente mais baratos do que os impressos e uma variedade quase infinita de títulos consagrados e novos; assim como já existe lá na terra do Jazz e arredores.

Mas o importante, o que conta mesmo, é que se já era fácil ler o Veríssimo em qualquer forma ou circunstância, agora está mais fácil ainda, dá pra ler até no escuro!