"Comédia sobre dois vendedores ambulantes, Sam e Jonathan, que estão cansados do mundo.", era tudo o que me dizia o prospecto do Cine Belas Artes sobre o filme que eu iria assistir naquela noite. Miseráveis 86 caracteres, contando espaços e pontuação. Nem um filme ruim do Edie Murphie se explica em 86 caracteres! Que cilada! Já a sinopse do filme da sala ao lado, Winter Sleep, com seus três períodos e mais de duas centenas de caracteres, deixava o meu filme mais desinteressante ainda. E se não bastasse, eu me reconheci na história do concorrente, sobre um escritor de textos altruístas, que durante intrincada trama invernal se revelava um hipocrita maligno. Mas acabei reconhecendo que, na verdade da vida, eu deva estar mesmo mais próximo de um pompo sentado num galho e refletindo sobre a vida do que de um escritor de psique conturbada que suponho, ou adoraria, ser.
E agora, o que fazer se o trailer do Youtube foi convincente e os ingressos já estavam comprados? Bom, ainda me restava o benefício da dúvida, a esperança de que o autor da sinopse estivesse um tanto – melhor se completamente – enganado ou então eu teria de enfrentar uma simples comédia Sueca mesmo. De qualquer forma, já me sentia no lucro, afinal, o filme já tinha me jogado numa montanha-russa de sentimentos antes mesmo que eu entrasse na sala.
Resignado e instalado em minha poltrona, logo nas primeiras cenas do filme comprovo, aliviado, que o autor da Sinopse estava enganado e fui surpreendido por um ótimo filme de arte Sueco. Sei que a vida, por mais trágica que seja, tem seu lado cômico, mas denota-se uma certa falta de tutano classificar esse filme como uma simples comédia. E as pouquíssimas risadas que ouvi durante a projeção também comprovariam a minha teoria.
Como é de praxe nos filmes de arte, existe a intenção de se questionar os padrões e processos utilizados pelo cinema comercial, o tal Cinema Hollywoodiano. E essa mania começa na própria classificação do gênero do filme, que é feita baseada no estilo da narrativa e desenvolvimento da trama, que pode ser suspense, terror, aventura, romance, comédia e etc.
Em algumas entrevistas, Roy Anderson, que é o diretor desse filme, já se dizia cansado de contrar histórias da forma tradicional, com começo-meio-fim, e daí veio a opção dele em filmar uma Antitrama, um roteiro sem narrativa, onde não se apresenta os poersonagens, nem a problemática, nem há desenvolvimento da história e muito menos resolução de qualquer questão levantada. Mas isso não significa que o filme seja sem sentido, a ausência de narrativa está apenas no filme, entretanto acontece dentro da cabeça de quem assiste. É o expectador o responsável integral por dar sentido ao emaranhado de cenas que o diretor nos apresenta, já que em momento algum ele nos sugere o que pensar ou como agir frente a tela.
Dessa forma, Roy consegue que a mesma película se transforme em diversos filmes diferentes, conforme são diferentes as pessoas e sesus universos simbólicos e culturais. Ele nos tira do papel de mero expectador e nos faz, de forma mais evidente e necessária do que outros filmes de arte aos quais assisti. Não sei se existe essa diferença na língua Suéca, mas em bom português, poderiamos dizer que Roy nos faz conjugar o verbo assistir em suas duas regências, simultaneamente assistimos ao filme e o filme.
Enfim, é esse tipo mais amplo de percepção que vai deixar a experiência do Um Pombo Pousou... mais emocionante. Caso contrário, se você é daqueles que pensa muito pouco sobre quase nada, prepare-se para assistir (se conseguir ficar até o final) ao filme mais chato da sua vida.
O filme, acertadamente, se inicia com três cenas (reflexões) sobre a Morte, a mais antiga e universal reflexão da história humana que, como diriam os Unidos do Caralhaquatro, "desde os tempos mais primórdios", ela está aí, despertando desde a mais minúscula migalha de filosofia que cada um de nós carrega até a nossa mais evidente angústia. Isso já sensibiliza a todos da platéia sobre abordagem filosófica necessária para aproveitar o filme. Além do mais, as três cenas trazem consigo as chaves mestras para interpretar o restante das cenas: a Rotina, a Ganância e a Solidão. E é por essa lupa que Roy Anderson sugere interpretarmos o filme e, não só o filme, mas também as nossas próprias vidas.
Altamente simbólico, prato cheio pra quem gosta de semiótica, tudo no filme pode ser interpretado em muitos níveis, o que me impossibilita de descrever e comentar as cenas em mais detalhes, já que elas terão significados e impacto diferentes em pessoas diferentes, mas posso fazer um esforço sobre alguns aspectos:
Os cenários de aparencia artificial, em cores pastel e sem graça, com poucos detalhes e objetos de cena, tão sem graça quanto a vida da maioria das pessoas do filme (e por que não do mundo real também?); A cara extremamente pálida dos adultos, entediados e doentes, em contraponto com as feições mais rubras das poucas crianças que aparecem usando cores ao seu redor e se divertindo, alheias à realidade sombria e às frustrações da vida adulta; A camera estática, nos colocando como o tal pombo do título (com direito a arrulhadas em cena ou outra), simplesmente observando o desenrolar da vida daqueles humanos que passam, como as pessoas que dizem "Que bom saber que você está bem.", que em geral não estão bem, muito menos felizes, ou, no mínimo com inveja; Enfim, luzes, cores e movimentos onde a vida pulsa e penumbra, morbidez e estaticidade onde a vida já não existe mais com tanto vigor. É assim que se desenvolve o filme, num surrealismo delicioso pra quem aceita o convite à reflexão.
E os dois vendedores da sinopse aparecem onde, afinal? Eles são os personagens que mais aparecerem no filme. Moram num hotel que vezes parece um hospício, vezes um presídio, e insistem em vender artigos engraçados que não tem graça para pessoas tristes que não tem mais interesse em diversão. Vale citar uma passagem próxima do final do filme, na qual um deles, o mais sentimental, levanta uma questão existencial profunda e importante no meio da noite: "É correto usarmos outras pessoas para a nossa própria diversão?" e é dissuadido de continuar a pensar nisso, pois já é tarde e todos ali tem que dormir para poder acordar cedo e ir trabalhar. Nada mais contemporâneo e verdadeiro do que a triste realidade na qual a maioria das pessoas no planeta vive: deixando as próprias verdades de anseios de lado para poder, no outro dia, acordar cedo e cair na rotina robótica do trabalho que não as realiza como pessoa nem como ser humano.
E há mais, muito mais reflexões que se despertam das nossas profundezas, para a luz de nós mesmos durante esse filme. No fim das contas, até entendi os motivos do sujeito que fez a sinopse esconder a natureza filosófica do filme. Ele sabia que, certamente, espantaria muita gente que preferiria voltar para o sossego do lar, pois tem coisa mais importante pra fazer do que refletir sobre a própria vida: trabalhar logo cedo no dia seguinte, como todo mundo faz, desde sempre.
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