Memórias. Cheiros, sabores, cores e texturas, a vida está guardada aí. É o que nos constrói, é o que, somado, somos. E quanto mais próximos da infância voltamos, mas próximos chegamos da nossa alma pura, da nossa essência, escondida sob cascas e mais cascas de vida vivida, gasta e endurecida.
Zigmund Freud, com sua Psicanálise, já nos atentava que olhar para o nosso passado, não é só olhar pra trás, é olhar para dentro e para o fundo, é reencontrar-nos nus e castos, curiosos e impressionáveis. É autoentendimento, oportunidade de resgatar verdades e sonhos, de nos realinharmos com a pureza original e com quem realmente somos. Sabendo disso, Manuel Basoalto tentou, em filme, revelar a essência de um parente seu, por parte de mãe: Neftali Ricardo Reyes Basoalto, o maior poeta da Sudamérica, conhecido pelo pseudônimo Pablo Neruda.
O filme Neruda – fugitivo não é uma biografia ou filme histórico. Basoalto (o Manuel), deixa de lado a história política do Chile e os esquemas intrincados da fuga de Pablo Neruda para a Argentina, à cavalo, através dos Andes, por motivo de perseguição política; ignora o antes, o durante e o depois da vida de Neruda e dos outros personagens da trama e nos mostra o que pra ele é o real tema do filme: de onde vem, como sobreviveu e como se expandiu a poesia de Neruda após tão traumático e difícil período de clandestinidade de quase seis meses (setembro de 1948 à março de 1949), dos quais boa parte foram passados às margens do Lago Huishue, no Chile. O importante aqui, como já disse o principezinho de Sain-Exupéry, "não se vê com os olhos". O importante para Manuel Basoalto, me parece, é entender como, durante a fuga, Pablo Neruda se tornou uma força da natureza, uma entidade Sulamericana, como a própria Cordilheira dos Andes.
O filme retrata o íntimo do poeta em seu mergulho na America do Sul e em si mesmo, revisitando os lugares onde passou a infância, nos arredores de Temuco, onde ainda muito jovem aprendeu a amar a vida e a poesia. Durante todo o filme vemos ecos de seus versos nas pessoas que o acolhem em suas casas; caminhando por entre as florestas que ele atravessa; transpirando pelo seu corpo cansado ou pela vegetação andina; derretendo feito a neve dos andes e escorrendo pelo curso dos rios que ele cruza; sussurando em seus ouvidos feito brisa ou ventando em tormenta nos vales que o escondem; cantados nas canções, ao lado das fogueiras gauchas, nas noites frias dos acampamentos; chovendo torrencialmente e trovejando ou pingando em lágrimas de saudade da sua amada esposa "Hormiguita" e da vida tranquila que abdicou por um bem maior, um Chile livre do autoritarismo e da violência estatal.
Neruda vivia poesia, que para ele era uma coisa da vida como todas as outras, como a política, o trabalho, o dormir ou acordar. Nunca deixou de escrever (e carregava sempre consigo sua máquina datilográfica portátil), criando, durante os quase seis meses de fuga, a maior parte do livro de poemas "Canto Geral", publicado em 1950, uma espécie de Livro do Gênesis da América do Sul, versejando, nos 231 poemas divididos em 15 Seções (Cantos), sobre a identidade Sulamericana. Percebe-se mais a influência do Canto X – que, não coincidentemente, se chama "O Fugitivo (1948)" – do já citado Canto Geral no roteiro de Manuel Basoalto, do que do livro histórico/biográfico Neruda : Clandestino, de José Miguel Varas, citado como referência pela maioria da crítica especializada. Talvez por isso o filme soe mais como um poema do que como um filme biográfico normal.
Assistir ao Neruda - fugitivo é como ler os poemas de Pablo Neruda, vendo seus versos saltarem incontáveis vezes nas falas e imagens do filme. É sentir a granulação da película, que envelhece e deixa tudo com cara de memória, de página de livro; é entender o faixo de sol que surge por entre as árvores enquanto poeta abraça sua amada "Hormiguita"; é encarar com reverência a Cordilheira que, imponente, abençoa o continente, mas, vilã, afasta o poeta da liberdade e da vida; é ouvir o canto dos rios, que correm feito sangue, o sangue latino, pelas veias abertas da América do Sul, entidade materna, de cujo barro foi forjado o povo Sulamericano. E, talvez, o mais importante: é, não só vislumbrar o íntimo do poeta Neruda, mas também sentir, lá no fundo de nós mesmos, debaixo de camadas de corpo e rocha, os chamados do Continente e da Poesia de que somos feitos.
Ps: Tocou-me tanto esse filme, que me inspirou o texto de semanas atrás, escrito na noite e dia seguinte à sessão de cinema.
Nenhum comentário:
Postar um comentário