sexta-feira, 31 de março de 2017

Acalme-se


Os mecanismos biológicos, psicológicos e sociais aos quais estamos submetidos nos aprisionam em uma realidade material de pequenez sofrível. São inevitáveis, mas necessários, pois resultam dos milênios de evolução do nosso corpo na interação com a matéria que nos cerca. Entretanto, no caminhar da Ciência, descobrimo-nos menos materiais a cada passo. Há tempos o átomo não é mais a partícula fundamental de tudo; existe mais espaço do que partículas em tudo, e essas partículas sequer são qualquer coisa próximas de sólidas; e se não há solidez real, fluímos, não existe limite entre o meu corpo e qualquer outra coisa. Enfim, é cada vez mais difícil ser cientificamente materialista.

Todavia, ainda carregamos angústias resultantes dessa visão antiquada da existência. Ainda presos ao sensorial primário, nos tornamos densos e tristes pela nossa postura mental equivocada frente à nova realidade que se descortina, dia-a-dia, através da Ciência e das nossas experiências íntimas, desapercebidas em meio aos tantos estímulos físicos que nos rodeiam.

Qualquer um dos desconfortos modernos pode ser vencido através de um ponto de vista mais atento a esse novo paradigma de realidade, deixando lado preconceitos, orgulho e o costume da pouca reflexão séria. Mas, se a ciência ainda é terreno difícil de se enfrentar na caminhada, podemos encontrar tais conceitos importantes na sabedoria popular que, de forma simples, facilitam mergulhos profundos no universo que nos cerca.

Recolhi a fábula abaixo numa dessas conversas que duram horas e se fala sobre tudo. O prazer de ouví-la, a beleza da mensagem que ela traz me faz bem até hoje, e fará ad aeternum. Ela traz uma verdade que, ao contrário do que nos acostumaram a pensar, não dói. A verdade cura, liberta e nos faz sentir bem. Quer ver? Repare como você se sentirá ao terminar de lê-la.

Duas ondas amigas seguiam juntas, fluindo em direção à praia. É o que fazem as ondas. A onda maior, lá do alto de seu volume, estava bastante depressiva e contrariada, enquanto a menor seguia, tranquilamente, ali embaixo.

– Se você pudesse ver o que eu vejo daqui, você não ficaria tão feliz assim. – disse a onda grande disse à onda pequena.
– E o que você vê? – perguntou a onda pequena.
– Não muito longe, vamos nos despedaçar na praia, e vai ser o nosso fim.
– Oh, isso? Tudo bem.
– O que? Como assim, tudo bem? Você está louca? – retrucou a maior.
– Não, não estou louca. Eu sei de um pequeno segredo que me faz ter certeza de que tudo está e continuará bem. – respondeu a tranquila onda pequena, que continuou:
– Quer saber também?

A onda grande ficou curiosa, mas desconfiada, e disse:

– Sim... mas, que tipo de sacrifício vou ter que fazer pra saber desse segredo? Vou ter que meditar durante anos pra entendê-lo?
– Que nada! É algo muito simples, bastante evidente, até. – respondeu, confiante, a menor. 
– Mas como é que algo é simples e evidente e, ao mesmo tempo, um segredo?
– Você tem razão. É que se fossemos mais atentos, não seria segredo pra ninguém. Só o é pela nossa descuidada falta atenção.
– Ora, se é assim tão simples, diga-me logo! Qual seria esse segredo tão consolador? – indaga a onda maior, com extrema curiosidade.

Então, tranquila e carinhosamente, a onda menor responde:

– Fique tranquila com a praia, amiga. Nós não somos onda, nós somos água.



sexta-feira, 24 de março de 2017

Ouvidos de Ouvir

Surdo do ouvido direito desde que nasci, busquei, junto da minha família, as mais variadas formas de cura na medicina tradicional, alternativa e, também, na espiritual. Neste domingo passado, enquanto passava um café, peguei-me lembrando desse périplo pela cura, durante o qual, desde muito jovem, presenciei e conheci os mais diferentes tipos de procedimentos, pessoas e crenças. Talvez, por isso, nunca me senti deslocado ao interagir com qualquer tipo de modo de vida espiritualista. 

Entre as boas lembranças, resgato alguns fatos de maior relevância, como as visitas que fiz à Casa de Dom Inácio de Loyola, em Abadiânia (GO), local onde o médium João Teixeira de Faria, intermedia ações de mais de 30 entidades espirituais com o propósito de cura. Apenas caminhar pelo local já é terapêutico, mas quem busca algo mais deve passar por consultas com o médium e seguir algumas recomendações dadas por ele. E foi o primeiro encontro, numa dessas consultas, que se gravou mais forte. Com um olhar tranquilo, mas que parecia me sondar em minúcias, ele pegou na minha mão e disse: "Não se preocupe, eu vou te curar, meu irmão".

Fiquei mais confiante ainda depois de vê-lo fazer, bem de perto, várias intervenções físicas – não fazem mais esse tipo de procedimento – que deveriam doer, incluindo incisões com bisturi, visivelmente profundas, tudo sem anestesia, nenhum gemido e pouco, ou até mesmo nenhum, sangue. Se quem faz isso diz que vai me curar, decerto irá. A juventude não me deixou seguir as recomendações por muito tempo, não fiz as tais "cirurgias", e parei de ir até lá.

Pensava agora, já tomando o meu café, o quanto minha visão sobre o vetor da cura mudou. Antes, acreditava que ela viria apenas de algo externo à mim, com aquelas intervenções físicas e espirituais. Hoje sei que a cura depende de processos interiores, quando abandonamos a culpa e, nos considerando merecedores de ajuda, aceitamos e agimos para sermos curados. Desta forma, diz a própria medicina tradicional, potencializamos e facilitamos muito todo o processo.

O que os religiosos chamam, há séculos, de fé – aquela que move montanhas – os médicos, atualmente, começam a chamar de postura mental positiva e, enfim sugerir como parte do tratamento. Hoje, sabemos, enfim, que uma forte intenção mental pode fazer a diferença entre resolver o problema ou fazer um remendo.

Já se foram vinte anos daquela visita. A surdez continua, agora acompanhada de zumbidos no único ouvido bom. Mas posso garantir que ouço cada vez melhor com ele. Tanto fisicamente, confirmam os médicos e os amigos músicos, quanto espiritualmente, pois além de ouvir melhor a tudo e a todos, finalmente consigo ouvir à mim mesmo.

Se o pior cego é o que não quer ver, o pior surdo é o que se nega a escutar. Percebo, cada vez mais claramente, que eu mesmo estou realizando grande parte da cura prometida em Abadiânia. Agora entendi o que me foi oferecido. Tenho ouvido melhor do que nunca e a cada dia melhor ainda. Espiritualmente, mas, ora, de que me serve um corpo perfeito com um espírito doente? É por isso que, primeiro, cura-se o Espírito.

sexta-feira, 17 de março de 2017

Ações e Reações

Na semana passada, o jornalista Robert Kelly passou por uma saia justa quando, durante uma entrevista para a mundialmente renomada rede BBC de radio e telejornalismo, seus filhos, desavisadamente, invadiram a sala da sua casa, na qual ele estava fazendo a transmissão. O fato foi amplamente divulgado e a família Kelly se transformou no mais recente xodó temporário mundial.

Não fosse por uma atitude do jornalista, tal vídeo passaria por mim como mais um qualquer, dos milhares que circulam por aí, entretanto, quando Kelly, instintivamente, sem sequer olhar para usa filha a afasta com o braço, acendeu-me um lembrete, algo que eu não tinha pensado antes e algo que me passaria desapercebido se não fossem algumas leituras que tenho feito: nós nos preocupamos muito com as nossas ações, mas nos esquecemos de vigiar as nossas reações.

Não julgo a atitude de Robert Kelly, muito menso sugiro como ele deveria ter agido. Eu o entendo. Posso imaginar a imensa pressão pela qual passava no momento, os dias de preparação e planejamento de cada palavra a ser dita, do melhor terno e gravata a ser usado, dos livros escolhidos para compor o cenário, e etc. Não contava ele com a interrupção imprevista, pelas pessoas que ele mais ama, seus próprios filhos. Uso este fato do amigo inglês apenas como ponto inicial de uma reflexão sobre mim mesmo e de como não estamos atentos a tudo o que fazemos.

Desde de que começamos com pensamento racional acerca da existência e das formas de se viver a boa vida, a filosofia e o pensamento religioso nos tem dado várias fórmulas que, independente das palavras utilizadas, nos sugerem uma vida honesta, caridosa e amorosa com todos ao nosso redor. Portanto, devemos ser atentos a o que fazemos, como e quando fazemos. Planejando e executando boas ações e pensamentos, receberemos o mesmo em contrapartida.

Planejar e ensaiar, com antecedência, para que nossas ações sejam sempre amorosas e caridosas é o mínimo que deveríamos fazer, é até fácil se compararmos com reagir aos imprevistos, muitas vezes assombrosos, e manter a mesma postura ética e honesta. Pra isso precisamos de ainda mais treino e atenção. Vejamos o exemplo dos lutadores de artes marciais que, preocupados com a qualidade dos seus movimentos em qualquer situação, treinam exaustiva e minuciosamente cada golpe, para que no caso de ser pego de surpresa, o golpe saia, automaticamente tão bom quanto se houvesse sido planejado de antemão.

É o ato reflexo que nos diz quem realmente somos, ele entrega a nossa verdadeira programação mental. Robert Kelly, um pai certamente carinhoso, como demonstrou em vídeo posterior, num momento de desatenção e nervosismo, agiu nada carinhosamente; assim como alguém que prega o amor e a caridade, quando é fechado no trânsito, e explode em insultos contra o irmão equivocado; ou a mãe exemplar que, ao comentar as notícias, sugere que matem os filhos desencaminhados de outras prováveis mães exemplares; e até mesmo eu – e imagino que não só eu –, quando ao ser abordado por um irmão mais desafortunado, antes mesmo de perguntar o como posso ajudá-lo, já nego a ajuda, sequer examino se tenho algumas moedas no bolso, condições de lhe pagar um prato de comida, dar a informação ou consolo que precisa ou, apenas, um sorriso e um desejo de melhor sorte, pequeno gesto que me custa pouco, mas vale muito.

sexta-feira, 10 de março de 2017

Resistência

Resistência é a característica de quem resiste. Vem do Latim resistentia que, por sua vez, se origina do verbo, também latino resistere, formado pelo prefixo re (para trás, contra) somado ao radical sistere (ficar firme, manter posição). Portanto, resistir, o verbo de quem oferece resistência, significa: "conservar-se firme; não sucumbir, não ceder".

Longe de ser algo ruim, a resistência é parte fundamental de qualquer processo. A resistência das pedras, das irregularidades do solo e demais obstáculos criam as ondas dos rios e mares, que ajudam na oxigenação da água. Graças à resistência do ar é que temos as ondas sonoras, que me permite estar ouvindo, enquanto escrevo, essa coisa linda que é o Improviso n.3, do Franz Schubert. E, no plano das ideias, é graças às resistências ideológicas que concebemos ideias melhores. Enfim, resistir é dar cores, sons e velocidades diferentes ao mundo, enriquecendo a existência.

Mas vale observar que resistir não é atacar, é permanecer forte e convicto perante a força contrária. E a sabedoria da resistência está na resiliência, outra palavra originada no Latim, pela soma, do nosso já conhecido prefixo re com salire (pular), significando "pular de volta, ricochetear". E foi na física que encontrei o melhor conceito de resiliência: "propriedade do material de retornar à forma ou posição original uma vez cessada a tensão sobre o mesmo".

Por séculos, muitos disseram, e muitos ainda dizem, que resiliência é coisa para fracos. Entretanto, conhecendo melhor o significado das palavras, a lógica nos mostra que, o nosso conceito de forte está equivocado, pois a questão não é simplesmente aguentar um golpe, mas, sim, suportar uma infinidade deles e continuar em pé, e se restabelecer por completo. Como num exemplo muito utilizado pelos orientais: uma vara de bambu, fina e delicada, por se balançar a cada brisa é julgada, por muitos, como mais fraca do que uma frondosa árvore de largo tronco, que permanece sempre firme, imóvel. Mas é o bambu, com sua delicadeza e maleabilidade que sobreviverá às grandes tempestades, pois se adapta à força do golpe até conseguir restabelecer-se na posição original; ao contrário da "forte" árvore que, por não saber curvar-se, desviar, adaptar-se, extenuada, inevitavelmente virá ao chão.

Ataque gera contra ataque, numa guerra que só termina quando uma das partes for eliminada. A resistência sábia, através da resiliência, geram adaptação, elevando os lados conflitantes a novos patamares, e mesmo que sejam, ainda, conflituosos, serão níveis mais elevados de contenda.

O importante aqui é observar que o movimento que fazemos contra o que nos incomoda não precisa ser duro, belicoso, inflexível, pois esse tipo de movimento, como comprova a física e a vida, só termina com a eliminação dolorosa de um dos oponentes. Entretanto, resistir resilientemente, com flexibilidade e paciência, tomando ações firmes quando necessário, mas inteligentes e suaves sempre, nenhum dos oponentes será eliminado, mas ambos se adaptarão ao convívio, se complementando e se auxiliando nesse processo inevitável, irresistível.

domingo, 5 de março de 2017

Sideral


Por não mais ir amar-te
Fiquei, destarte, soturno
Sem brilho, sem vida, o só
Que sem rumos se enterra

Por tão triste que isto seja
Ver-nos juntos, na memória, ainda dói
Já optei pela distância
Me curo, assim, melhor

E sigo, mesmo com a alma urrando
Ainda que me faça chorar o céu noturno
Pois, enquanto busco outras estrelas,
Ofuscando a todos os corpos celestes, ainda vejo-a nua

sábado, 4 de março de 2017

Sonhava...

Sonhava...
Com ternura nos devorávamos
Em carícias desconcertantes
Entre gozos nos beijávamos
Ruidosos gemidos
Incontroláveis espasmos
Enganchavam-nos pele e pelos
E juras de eterno amor e zelo

Acordei esbaforido, em desespero...
Ai, meu deus, que pesadelo!

sexta-feira, 3 de março de 2017

Quitação


Pelas cobranças que me chegam
E os cobradores que se me mostram
Tenho certo: é alta a dívida!

Adquirida pelos séculos desregrados
Do viver desequilibrado
De paixões insubmetidas

Por isso o trabalho constante
Do muito dar sem nada em troca querer
Pois recebido, sei, já tenho bastante

A eterna moratória
Eterna misericórdia
Pelo eterno trabalho do amor e do perdão

É a paga jubilosa
Chance nova e grandiosa
Para todo coração


quarta-feira, 1 de março de 2017

Sobre compreender


"Os que envelhecem não compreendem o valor das ilusões que perderam; os jovens não dão valor à experiência que ainda não tem."


Em discurso na sessão inaugural da Academia Brasileira de Letras, no dia 20 de Junho de 1897.