terça-feira, 20 de janeiro de 2015

Arthur Rimbaud : Poesia Completa e Correspondência

Revirando o baú, encontrei uma antiga resenha que escrevi sobre dois deliciosos volumes que li no final de 2006: Rimbaud Complete (Poesias Completas de Rimbaud) e I Promisse to Be Good : The Letters of Rimbaud (Prometo Ser Bom : As Cartas de Rimbaud). Livros muito bem traduzidos do Francês para o Inglês por Wyatt Mason, estudioso e especialista em Rimbaud.


Capas dos livros Rimbaud Complete e I promisse to be good : The Letters of Rimbaud, de Wyatt Mason


Posso dizer que estes livros salvaram minha pele – ou melhor, minha alma – naqueles tempos longe da família, solto no mundo, onde qualquer vida era possível e eu ainda não sabia muito bem qual delas eu queria viver. E não só pela gratidão, mas também pelo prazer que tive em ler estes livros, resolvi revisar e atualizar a resenha antiga e republicá-la. Adicionei mais informações sobre as traduções dos dois volumes em português (traduções de Ivo Barroso, que já tive o prazer de ler alguns trechos) e tive uma ótima surpresa, descobri que, no Brasil, publicou-se um outro volume além dos dois que eu já conhecia, também traduzido pelo Ivo Barroso e dedicado exclusivamente à Prosa Poética do Rimbaud (Uma Temporada no Inferno; Iluminações; Um Coração Sob a Sotaina; Os Desertos do Amor; Prosas Evangélicas).



Sem mais delongas, à resenha!

Arthur Rimbaud na juventude.

Revolucionar a poesia francesa dos 16 aos 21 anos de idade e morrer doente aos quase 37, após vários anos desbravando o norte da África como empreiteiro e comerciante de armas. Esse é o resumo, superficialíssimo da vida de Jean-Nicolas-Arthur Rimbaud, nascido em 20 de outubro de 1854, na pequena cidade de Charleville, que fica na região de Champagne-Ardene, noroeste da França, fazendo fronteira com a Bélgica. Interessante é a bandeira dessa província: dois corações, um verde e um amarelo, entrelaçados – brasileiríssimo.

Interessantemente a influência deste jovem poeta, na época apelidado até de L'enfant Shakespeare (o jovem Shakespeare) não morreu junto com ele, pelo contrario, continua crescendo, e. até hoje muitos – não só poetas – conclamam Rimbaud como uma importante influência. Nesse time estão pessoas do quilate de Vinícius de Moraes; os Simbolistas e Surrealistas quase todos; Cazuza; Jim Morrisson e outros tantos Beatniks como Jack Kerouac, William S. Burroughs e Allen Ginsberg, além de uma infinidade de artistas de outras áreas. A ideologia libertária da juventude revolucionária das décadas de 1960 e 1970 encontrou respaldo na poesia e na própria vida de Rimbaud. Enfim, o conceito de liberdade na cultura ocidental tem um toque desse revolucionário poeta menino.

Apesar de várias poesias esparsas já existirem em português, não havia nada tão meticuloso relacionado a ele no pais. O trabalho do tradutor e também poeta Ivo Barroso, estudioso de Rimbaud desde a década de 1950 quando publicou a tradução do “Soneto das Vogais” no suplemento dominical do Jornal do Brasil. Já na década de 1970, publicou a tradução de “Une Saison En Enfer” (Uma Temporada no Inferno) e finalmente, em 1994, publicou, pela Topbooks, o primeiro volume da coleção sobre a qual falamos: a Poesia Completa de Arthur Rimbaud, em edição bilíngüe (Francês-Português).

Neste primeiro volume, é possível perceber a preocupação do tradutor em preservar a métrica, o ritmo, a rima e o máximo possível das sutilezas dos versos e da personalidade do poeta francês. Afinal, todo bom leitor sabe que uma tradução literária é muito mais do que só transcodificar uma língua em outra e, se mal feita, pode destruir tudo o que o autor original tem de brilhante e transformar o texto de um gênio em um monte tedioso de palavras empilhadas. Enfim, para respeitar a essência da poesia de Rimbaud, Ivo dedicou muitos anos integralmente à esta tradução, garimpando livros mundo afora, variantes, dados biográficos de Rimbaud e de pessoas que o circundavam. Nesse livro se percebe bem a foça das idéias e versos que contaminaram o espírito de milhares de outros poetas e artistas posteriores à Rimbaud. Aqui vai um exemplo:

Le Bateau Ivre

Comme je descendais des Fleuves impassibles,
Je ne me sentis plus guidé par les haleurs:
De Peaux-Rouges criards les avaient pris pour cibles
Les ayant cloués nus aux poteaux de couleurs.

J' étais insoucieux de tous les équipages,
Porteur de blés flamands ou de cotons anglais.
Quand avec mes haleurs ont fini ces tapages
Les Fleuves m'ont laissé descendre où je voulais.

...................................

Plus douce qu'aux enfants la chair des pommes sures,
L'eau verte pénétra ma coque de sapin
Et des taches de vins bleus et des vomissures
Me lava, dispersant gouvernail et grappin.

Et dès lors, je me suis baigné dans le Poème
De la Mer, infusé d'astres , et lactescent,
Dévorant les azurs verts; où, flottaison blême
Et ravie, un noyé pensif parfois descend;

...................................

Si je désire une eau d'Europe, c'est la flache
Noire et froide où vers le créspuscule embaumé
Un enfant accroupi plein de tristesses , lâche
Un bateau frêle comme un papillon de mai.

Je ne puis plus, baigné de vos langueurs, ô lames,
Enlever leur sillage aux porteurs de cotons,
Ni traverser l'orgueil des drapeaux et des flammes,
Ni nager sous les yeux horribles des pontons.

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O Barco Ébrio

Como descesse ao léu nos Rios impassíveis,
Não me sentia mais atado aos sirgadores;
Tomaram-nos por alvo os Índios irascíveis,
Depois de atá-los nus em postes multicores.

Estava indiferente às minhas equipagens,
Fossem trigo flamengo ou algodão inglês.
Quando morreu com a gente a grita dos selvagens,
Pelos Rios segui, liberto desta vez.

...................................

Mais doce que ao menino os frutos não maduros,
A água verde entranhou-se em meu madeiro, e então
De azuis manchas de vinho e vômitos escuros
Lavou-me, dispersando a fateixa e o timão.

Eis que a partir daí eu me banhei no Poema
Do Mar que, latescente e infuso de astros, traga
O verde-azul, por onde, aparição extrema
E lívida, um cadáver pensativo vaga;

...................................

Se há na Europa uma água a que eu aspire, é a mansa,
Fria e escura poça, ao crepúsculo em desmaio,
A que um menino chega e tristemente lança
Um barco frágil como a borboleta em maio.

Não posso mais, banhado em teu langor, ó vagas,
A esteira perseguir dos barcos de algodões,
Nem fender a altivez das flâmulas pressagas,
Nem vogar sob a vista horrível dos pontões."


Neste poema (parcialmente citado), Rimbaud cria a figura do barco louco, embriagado de infinito, navegando ao acaso, rumando ao desconhecido. O barco é, na verdade, uma metáfora para si mesmo, navegando entre as incerteza da vida.

Incertezas e dilemas que podem ser examinadas em detalhes e entendidas num outro volume, o terceiro da trilogia de Ivo Barroso (O segundo é o dedicado exclusivamente à Prosa Poética de Rimbaud). Em "Arthur Rimbaud - Correspondência", publicado em 2009, também pela Topbooks, encontramos as cartas que Arthur Rimbaud mandava para sua família e amigos. As cartas datam do início de 1870 até 09 de novembro de 1891, um dia antes de sua morte, doente de tifo, sem uma perna, num hospital em Marselha, na França, acompanhado da família, logo depois de completar 37 anos de idade.

Quando iniciou sua correspondência, em 1870, Rimbaud tinha apenas 16 anos, e em suas cartas discutia a poesia em profundidade e a coerência entre a vida do poeta e sua obra. São cartas maravilhosas, onde se percebe a genialidade do garoto. É nessa fase que ele inicia sua relação homossexual e turbulenta com Paul Verlaine, também um grande poeta francês, com o qual vai morar em Paris. Também é possível ler, em várias das cartas, versões de alguns poemas ainda inacabados, para os quais Arthur pedia sugestões a outros amigos poetas. Estas discussões estéticas, filosóficas, simbólicas, e até mesmo questionando a qualidade da literatura que se fazia na França, proporcionam ao leitor de suas cartas a chave para decodificar de forma mais correta os símbolos e imagens de seus versos. Veja um trecho da famosa "Carta do Vidente" (15 de Maio de 1871), texto onde definia o seu método de viver e criar sua poesia, e que certamente influenciou várias gerações de "poetas malditos":

(…) um longo, imenso e racional desregramento de todos os sentidos. Todas as formas de amor, de sofrimento, de loucura; buscar a si, esgotar em si mesmo todos os venenos, a fim de só lhes reter a quintessência. Inefável tortura para a qual se necessita toda a fé, toda a força sobre-humana, e pela qual o poeta se torna o grande enfermo, o grande criminoso, o grande maldito, — e o Sábio supremo! — pois alcança o insabido.

Interessante é ver a mudança no assunto das cartas a partir de 1875, quando Arthur, durante uma longa caminhada pela Europa (sim, à pé mesmo!) começa a se desinteressar pela poesia e, progressivamente, a correspondência do poeta que decretou a necessidade de se “reinventar o amor” torna-se a correspondência de um homem comum, destinada a sua família distante. Nesta segunda fase de sua vida não há mais poesia, apenas pedidos de livros de agrimensura, dicionários de árabe, reclamações sobre o calor infernal da região e demais aspectos do choque cultural que sofria. Mas mesmo em meio a tantos assuntos cotidianos, ainda se vê muita reflexão sobre o que efetivamente é a vida e pra que ela serve – uma constante em Rimbaud. São trechos esparsos, mas tão envolventes quanto seus versos da juventude, que exalavam rebeldia, agonia e erotismo.

Arthur Rimbaud, em idade adulta.
Foto tirada no terraço do Hotel Universo, em Áden, Iêmen.

Acompanhamos agora Rimbaud, já não mais poeta, em sua jornada – quase uma fuga de tudo e todos –, pelo norte da África, empresário, construtor, mercador de armas, e nunca satisfeito com onde estava ou com o que estava fazendo, reflexo de uma alma inquieta, que cada vez mais se sentia desconectada de tudo e, solta no universo, compreendia verdadeiramente não pertencer a lugar algum.


Poesia Completa
Correspondência
Prosa Poética
A trilogia 'Rimbaudniana' de Ivo Barroso.


Seja para simples deleite em boa poesia ou por uma busca mais profunda sobre a essência da alma; seja para buscar inspiração pra tocar a vida em frente ou criar coragem para mudá-la radicalmente; encontrará nestes volumes, na vida de Arthur Rimbaud (poeta ou não), inspiração de sobra. Como já aconteceu e ainda acontecerá com muita gente.

2 comentários:

Anônimo disse...

Não sei se salvou minha alma, mas com certeza acalmou meu turbilhão teenager de confusão. O bolo de chocolate ficou te esperando ontem. See you another time my dear, love, Li.

Tiago Lobão disse...

Li, my dear. Quem me dera fosse só o bolo, que nada sente, à esperar.