segunda-feira, 30 de maio de 2016

El Mapa de Todos


Emocionado pelo filme "Neruda - Fugitivo" (2014, Manoel Basoalto) e por todo o esforço poético, literário e de vida que o poeta teve na tentativa de unificar a América do Sul ou, pelo menos, criar um sentimento Sulamericano comum, senti-me envergonhado por ser um tanto alheio à cultura e, principalmente, à música tradicional desta fatia de continente que me cerca. Coloquei-me, então, numa jornada de reconhecimento da vizinhança, da qual, afora o Tango e a Música Contemporânea Argentina, do imbatível Astor Piazzolla, sei muito pouco. Saí, então, do Chile de Neruda, Violeta Parra e Atahualpa Yupanqui, passei pelo Paraguai, revisitei a Argentina e cheguei ao Uruguai, onde encontrei Daniel Viglietti (Montevideo, 1939).

Durante a segunda metade do Sec. XX, parecia que a America do Sul estava infectada pelo vírus dos governos ditatoriais e, naqueles tempos de terror, entre revoluções e governos totalitários, assim como no Brasil, haviam, em toda parte, movimentações estudantís, artísticas e políticas que lutavam por libertar o povo do estado repressor. Pelo que entendi, Daniel Viglietti foi como o nosso Geraldo Vandré, que armado com seu violão, música e poesia, cantava a liberdade durante os duros anos da década de 1960.

Minha canção preferida de Viglietti é "Milonga de Andar Lejos", do disco "Canciones para el Hombre Nuevo", de 1968. Nessa milonga, um tipo de canção que adoro, por ser lenta e melancólica, Viglietti canta o amor pela sua terra cujo sangue é mestiço e que, apesar de muitas e diferentes bandeiras, tem a mesma pobreza. Por isso, cantava ser preciso derrubar as fronteiras, expandir o mapa, criando "el mapa de todos", uma América do Sul unida. Independente do posicionamento político de Viglietti, sinto que esta canção transcende a política e a própria América do Sul na luta contra os "invasores" ou "colonizadores"; ela fala de um anseio humano universal, de nos transformar-nos em algo maior do que um mero conjunto de nações, que nos transformemos apenas em humanos num mesmo planeta, criando uma grande terra de todos, sem fronteiras, um corpo único e complexo do qual todos são parte essencial. É uma luta solitária, mas como diz a canção, "uma gota faz pouco, muitas gotas fazem tempestade".

E foi há dias atrás que uma bela coincidência me fez reviver essa viagem espiritual pela Sudamérica. Meu amigo-irmão Nevilton, ao regressar de Montevideu, trouxe-me, de presente, um livro que sempre quis ter na língua original: Vinte Poemas de Amor e uma Canção Desesperada, do Pablo Neruda. Além da emoção pelo presente em sí, um desejo antigo realizado, logo vi o grande círculo simbólico que estava em minhas mãos: Foi Neruda quem me levou do Chile ao Uruguai de Viglietti e, dias atrás, o Uruguai de Viglietti me trouxe de volta ao Chile de Neruda. E com o tempero extra do livro ter sido publicado na Espanha, um dos grandes e cruéis colonizadores da América Latina. Que grande viagem, funda na alma Sulamericana, em apenas um livro de poemas! Obrigado, Nevilton!






Qué lejos está mi tierra
Y, sin embargo, qué cerca 
O es que existe un territorio 
Donde las sangres se mezclan.

Tanta distancia y camino,
Tan diferentes banderas 
Y la pobreza es la misma 
Los mismos hombres esperan. 

Yo quiero romper mi mapa, 
Formar el mapa de todos, 
Mestizos, negros y blancos, 
Trazarlo codo con codo. 

Los ríos son como venas 
De un cuerpo entero extendido, 
Y es el color de la tierra 
La sangre de los caídos. 

No somos los extranjeros 
Los extranjeros son otros; 
Son ellos los mercaderes 
Y los esclavos nosotros. 

Yo quiero romper la vida, 
Como cambiarla quisiera, 
Ayúdeme compañero; 
Ayúdeme, no demore, 
Que una gota con ser poco 
Con otra se hace aguacero. 


sexta-feira, 20 de maio de 2016

Nevilton : Noite Alta [EP, 2016]




Na hora de acordar, difícil é ficar de pé. O mundo inteiro cheira café e a gente vai trabalhar". Todos os que ouvem se identificam com o refrão da música Noite Alta, do Nevilton, segunda faixa do disco Sacode. Se você ainda não o conhecia, prepare-se para, à partir de agora, nunca mais esquecê-lo!

Há pouco mais de um ano, em abril de 2015, foi publicado um videoclipe super especial pra essa música, idealizado por Leo Longo e Diana Boccara, o casal maravilha do projeto Around The World In 80 Music Videos, pelo qual estão rodando o mundo gravando clipes, e mais, unindo e divulgando artistas, países e culturas sob as asas dessa bela ideia.

Aproveitando o aniversário do clipe, Nevilton preparou um EP com 5 versões diferentes de Noite Alta, além da versão original. Novas abordagens e experiências pra uma canção que é sempre recebida com muito carinho pelo público. Carinho que, certamente, será quintuplicado.

A versão 1972 é inspirada na sonoridade da Motown Records e da Stax Records, gravadoras norte-americanas que definiram o som dos anos 70, com seus belos discos cheios de groove e alma. A versão Semi-acústica foi como despir a canção, aproximando-a do espírito das rodas de violão, dos bares e pubs, pra todo mundo cantar e bater o pé no chão. A versão original vem pra matar a saudade e a versão ao vivo pra trazer toda a energia dos shows, que até então só quem viu podia se gabar. Inclusive, esse é o primeiro registro oficial em áudio ao vivo, lançado pela banda. Fecham o EP dois remix, o "NEV Remix" produzido para um projeto do site MúsicaPavê e o Fabz Zonatti Remix produzida pelo DJ da cena indie-rock e eletrônica paulistana. A capa no melhor clima amanhecer-hora de acordar é ilustração de Pietro Domiciano.

Cheio de surpresas e carinho, Nevilton lança mais esse trabalho, preparando os fãs para o um próximo álbum que está em fase de gravação. E como diz o próprio Nevilton: "É um EP de versões. De versões e diversões!". Divirtam-se.


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sexta-feira, 6 de maio de 2016

Desencontro : Primeiro Ato

Uma crônica em dois atos.
(podem ser lidas simultaneamente)


Primeiro Ato: O Homem

Pontualmente, como em todos os dias, ele entra na padaria. Enquanto se aproxima do balcão, seus olhos ansiosos vasculham cada rosto para encontrá-la. Assim que se acomoda em um dos bancos, voilà! Sua atendente preferida salta diante dele, linda como sempre, e diz:

– Olá, senhor Álvaro! Como vai?

Instantaneamente, acolhendo uma das mãos da jovem balconista entre as suas, responde:

– Olá, Regina! Vou muito bem, obrigado, mas quantas vezes terei que insistir? “Senhor” é aquele nosso amigo lá no céu. (tô perdido mesmo...) Por favor, apenas Álvaro. E pelo o que vejo você está ótima (e linda de morrer) como sempre! – completa com um sorriso, prontamente correspondido pela moça.
– Tudo bem sim, “Álvaro”. – responde ela recitando molengamente seu nome enquanto se debruça no balcão e se aproxima – em que posso lhe ser útil hoje?
– Adivinha?! (hum... esse perfume...que tal um beijo?... isso sim seria muito útil!).

Se entreolham e:

– Me vê aquele café! – dizem ao mesmo tempo.
– É pra já! – diz a moça.
– Ah! E não se esqueça de, depois de vê-lo, trazer uma xícara cheia dele pra mim, heim! (mas que piada idiota! Como eu sou idiota!).

Ela se afasta e vai cuidar do pedido. “Que doce de garota", ele pensa com seus botões. Mas, em segundos, pensamentos amargos do cotidianos invadem sua mente e a divagação vai longe. O que só é interrompido com a voz de Regina:

– Está aqui seu café, Álvaro.
– Ah! Obrigado, meu anjo! Muito obrigado mesmo.
– Precisa de mais alguma coisa?
– Não, (só de você, um quarto, um canto qualquer que seja, uma noite...) obrigado. Vou seguir a tradição e ficar só com o café (mas, um dia, fico é com você).
– Álvaro, você me dá licença, hoje o movimento está grande e vai ser difícil da gente conversar como de costume.
– Claro, fique à vontade!

Enquanto no balcão, ele não tira os olhos da atendente e, por algumas vezes, seus olhares se encontram, como que brincando de esconde-esconde. Ao terminar seu ritual do café, ele se despede, envolvendo novamente a mão de Regina entre as suas, com muita delicadeza.

– Bom... é... (ai meu Deus, falo ou não falo?) - ...o café estava ótimo, e mesmo se não estivesse, o que é impossível, já teria valido a pena só pela sua companhia.
– Que é isso, senh...digo, Álvaro! Conversar com você sempre me deixa muito feliz.
– Que bom! (por que diabos não te encontro fora daqui?) Mas tenho que ir (você deve ser mais linda ainda sem esse uniforme). Nos veremos amanhã então, como sempre (droga...).
– Ótimo! Nos veremos amanhã, até lá – responde com um leve sorriso.

Álvaro solta a mão de Regina, desalinha seu olhar com o dela e se dirige até a porta, de onde dá um último aceno de mão, assistindo à moça desaparecendo por detrás da parede e da distância que agora os separa. Enquanto caminha, puxa a carteira do bolso de seu paletó, da qual tira um guardanapo carinhosamente dobrado no qual se lê um número de telefone. “Um dia desses ainda ligo pra ela”, pensa consigo “Que mulher incrível! Mas o que ela iria querer comigo, esse velhaco? É... uma pena”.


Desencontro : Segundo Ato

Uma crônica em dois atos.
(podem ser lidas simultaneamente)


Segundo Ato: A Mulher

Pontualmente, como em todos os dias, ela respira fundo e olha para o relógio. “Faltam dez minutos” pensa, e prontamente se dirige ao banheiro para retocar o visual. Logo que sai, seus olhos ansiosos vasculham cada rosto da panificadora. Assim que mira a porta o vê entrar. Assiste seu cliente preferido se acomodando em um dos bancos do balcão, enquanto se aproxima sorrateiramente e, sorrindo, diz:

– Olá, senhor Álvaro! Como vai?

Instantaneamente após a saudação sente sua jovem mão ser acolhida entre as mãos altivas do moço, que com seus mais-do-que-quarenta de idade lhe trazem segurança e causam um calafrio estranho.

– Olá, Simone! Vou muito bem, obrigado, mas quantas vezes terei que insistir? “Senhor” é aquele nosso amigo lá no céu. Por favor, apenas Álvaro. E pelo que vejo você está ótima como sempre! – completa, mostrando um riso maroto, prontamente correspondido pela moça.
– Tudo bem sim, “Álvaro”. – responde ela recitando molengamente o nome do cliente enquanto se debruça no balcão e se aproxima – (isso... o perfume...) em que posso lhe ser útil hoje?
– Adivinha?!

Os dois se olham e:

– Me vê aquele café! – dizem ao mesmo tempo.
– Pois não, só um minutinho! – diz a moça. (hunf, café! Será o Benedito que ele não vai se tocar?).
– Ah! E não se esqueça de depois de vê-lo, me trazer uma xícara cheia dele, heim! – Álvaro ri e deixa entrever um sorriso amarelo.

Simone se afasta para atender ao pedido de seu cliente. “Que piada idiota! Mas ele é tão gracinha... uma doce.”, pensa ela com seus botões. Vai até a máquina de expresso, faz o café pensando em mil coisas, se perde entre pensamentos cotidianos e fantasias de amor. Assim que o pedido fica pronto, retorna até Álvaro e diz:

– Está aqui seu café, Álvaro.
– Ah! Obrigado, meu anjo! Muito obrigado mesmo.
– Precisa de mais alguma coisa? (uma namorada, esposa, amante, que seja eu de preferência...).
– Não, obrigado. Vou seguir a tradição e ficar só com o café.
– Álvaro, (só o café, é?) você me dá licença, hoje o movimento está grande (um dia eu te ganho e você vai ver só!) e vai ser difícil da gente conversar como de costume.
– Fique á vontade!

Durante o tempo em que o rapaz permanece na panificadora, Simone não perde os pequenos intervalos entre um atendimento e outro para olhá-lo. Por algumas vezes seus olhares se encontram, como que brincando de esconde-esconde.

Simone estava concentrada terminando de servir um milk-shake quando ouve a seu nome ser chamado. Era Álvaro, ele queria se despedir. A moça achegou-se bem próximo do cliente que imediatamente apanhou sua mão e, novamente, a envolveu entre as suas com extrema delicadeza.

- Bom...- dois segundos de silêncio, o rapaz inspira ar para os pulmões - ...o café estava ótimo, e mesmo se não estivesse, o que é impossível, já teria valido à pena só pela sua companhia.
- Que é isso, Senh...(ái!) digo, Álvaro! Conversar com você sempre me deixa muito feliz (mas você não dá bola pra mim e isso me deprime...).
- Maravilha, que bom ouvir isso! Mas tenho que ir. Nos veremos amanhã então, como sempre.
- Ótimo! Nos veremos amanhã, até lá (tsk, tsk, tsk...).

Álvaro solta a mão de Simone, desalinha seu olhar com o dela e se dirige até a porta enquanto ela fica detrás do balcão, assistindo ele desaparecer por trás dá parede. O último gesto do rapaz foi o início de um aceno de mão.

Voltando ao batente a moça pensa consigo: “Um dia desses ainda ligo pra ele... mas porque ele não me liga? Ele é tão meigo, mas tão lento! Pensando bem, o que ela iria querer comigo? Uma balconista de padaria vinte anos mais nova... Uma pena. Peraí, ele não pagou o café!”.