sexta-feira, 29 de julho de 2016

Nos olhos de quem vê


"As pessoas são bonitas quando se presta atenção nelas, né?". Foi o que Mônica me disse, durante uma das aula sobre Espiritismo que frequento. Já se passaram meses e tal frase ainda me comove todas as vezes nas quais me volta à mente.

Eu não sabia pra quem a colega estava olhando quando lhe assucedeu tal pensamento, mas olhei ao redor, agora com mais atenção, pra cada uma das pessoas que dividiam aquela fatia de espaço-tempo comigo. Tantas feições, tantas histórias diferentes. Era impossível mensurar o que continha cada ruga, cicatriz ou fio de cabelo que estavam diante dos meus olhos. E quantos olhos! Que olhares! Felizes, tristes, cansados, esperançosos, curiosos... resultados de aventuras tão secretas, até pra elas mesmas. E esse enigma, esse segredo inacessível, revestia tudo com a aura mágica da beleza que a colega me assinalava.

Perceber, com mais atenção, as pessoas ao meu redor lembrou-me dum exercício que fazia quando adolescente, lá em Umuarama. Tinha o costume de andar, durante o por-do-sol ou alta noite, pela avenida Getúlio Vargas, tentando sentir as pessoas dentro de cada casa em frente da qual passava. Quantas eram? O que estariam fazendo? O que estariam sentindo? Algumas estariam no quarto, outras na sala de TV. Alguém na cozinha? Algumas felizes; outras amarguradas; outras apaixonadas, esperando o telefonema que lhes acalentaria o coração; outras dormindo, se preparando para o próximo dia. Eram tantos os sentimentos e, mesmo que imaginários, os sentia bem reais e me conectava com a vizinhança toda, me tornava parte daquilo tudo.

Mas, como diz meu amigo Nevilton, "o mundo se pôs a girar", e cada vez mais rápido. O tempo para esse capricho, esse exercício de se conectar às outras pessoas se dissolveu na rotina e, só ali, naquela sala de aula, notei que raramente voltava a essa prática que tanto gostava e tanto me fazia bem. Antes eu prestava atenção nas pessoas até mesmo sem vê-las, e isso havia se tornado raro até com elas na minha frente.

Agora, sempre que caminho pela rua, dou mais atenção a quem passa ao meu redor e vejo que a Mônica estava certa. Há muita beleza em todo lugar. Até tentei refazer o exercício adolescente, ontem à tarde, no meio da Avenida Paulista. Quase caí em convulsão quando senti as milhares de pessoas que estavam ali, num raio de 100 metros de mim, pela rua; pelo metro; nos ônibus e carros; espalhadas pelos andares de tantos prédios; descansando; trabalhando; comprando livros, roupas; tomando café; comendo macarronada; apressados; tristes; contentes; preocupados; realizados; vazios... 

É, sim, muita coisa pra se dar atenção. Assusta. Mas a vida é esse plural magnífico mesmo, é cheia de coisas pra se dar atenção, conectar-se e sentir, enriquecer-se. Com prática e foco, tudo fica mais seguro e saudável. Não é preciso criar barreiras, mas, sim derrubá-las. Só assim será possível perceber que não só as pessoas são bonitas quando se presta atenção nelas, mas que tudo é bonito quando se presta atenção.

sexta-feira, 22 de julho de 2016

Quem é você?

Mantenho o costume de encontrar amigos para tomar um café e conversar. Acredito que esse tempo ouvindo opiniões externas e revisitando as minhas, é um exercício importante para a manutenção da saúde mental e um fator inquestionável de melhoria na minha qualidade de vida. E espero que na dos amigos também! 

Num desses Cafés Filosóficos e Literários particulares, uma amiga, que é pesquisadora do Instituto de Ciências Biomédicas da USP e entusiasta do Budismo, contou-me de um estudo sobre os efeitos solidão nas pessoas, para o qual mantiveram alguns voluntários, por 55 minutos, sozinhos em uma sala completamente vazia, onde a única coisa que havia para fazer era apertar um botão que lhes daria um choque elétrico. Assustadoramente, após os 15 primeiros minutos, mais da metade dos voluntários preferiu passar o restante do tempo se eletrocutando a ficar quieto, em silêncio, a sós consigo mesmo.

As coisas só podem estar muito erradas quando tomar choques elétricos é melhor do que ficar a sós consigo mesmo. Shakespeare, em Hamlet, já alertava que o autoconhecimento é doloroso, e que, naturalmente, uma pessoa a desbravar seu mundo interior acaba desenvolvendo um certo tipo de dor e melancolia. Sim, é natural, inevitável e comum, é como a dor muscular que todos sentem após um exercício físico. E exercícios físicos são tão importantes para o corpo, evitando que definhemos, assim como os exercícios mentais. Portanto, diferente do que nos forçam a crer, sentir dor não é algo ruim, é apenas um alerta, um sinal de uso e convite para a reformulação de atitudes.

No mundo, fora do experimento, os nossos eletrochoques são os entorpecentes e as ressacas físicas e morais; a alienação pela TV, smartphones e excesso de informação inútil; o sofrimento do trabalho ininterrupto para suprir desejos infinitos e atingir metas impossíveis que nos impomos, tudo isso justamente para não termos tempo de nos encararmos e percebermos o quão vazio estamos. É claro que não se pode negar que as vis engrenagens do mundo nos levam a agir assim, elas nos maceram e nos coisificam, mas, também, é inegável a nossa responsabilidade em permitir chegarmos onde chegamos. Quem não se conhece não sabe do que precisa e aceita qualquer coisa.

Vejo o tantos sofrendo por terem desaprendido a ficar alguns segundos em silêncio. E, nesse mundo de estímulos múltiplos e simultâneos, que cobram respostas irrefletidas e imediatas, quase na velocidade da luz, só aumentamos, ainda mais, a quantidade de equívocos. É preciso frear. É preciso voltar a nos conectarmos com aquela voz interior que está soterrada sob um turbilhão de bilhões de ideias e sons, ruídos e pensamentos e ouvir o que ela tem a nos dizer.

Blaise Pascal alertou, há séculos atrás, que “todos os problemas da humanidade decorrem da incapacidade do homem de sentar-se calmamente em uma sala sozinho”. Imagino quanto sofrimento, pessoal e interpessoal, poderia ter sido evitado na nossa própria história e na história da humanidade, se utilizássemos melhor os nossos momentos de solidão para nos conhecermos e refletir sobre nossas atitudes conosco e com o mundo.


Bônus:
Gostou do assunto, ouça o que a Márcia Baja tem a dizer sobre a experiência dela com a Meditação.

segunda-feira, 18 de julho de 2016

Mulher-Lua




É impossível negar que toda música desperta algum sentimento, e pouca gente vai discordar de mim. Seja bom ou mal, seja nojo ou maravilhamento, não importa, toda música desperta algo na gente. Mas há algumas canções que vão mais fundo que outras e convulsionam áreas tão profundas que nem sabíamos existir. Uma dessas canções, na minha vida, é a Moon Woman 2, que faz parte do primeiro álbum do Elvis Perkins, chamado Ash Wednesday, lançado em 2007.

Num primeiro momento, a música me tocou pela sonoridade, timbres lindos de violão, bateria, violino e contrabaixo acústico; pela melancolia e por dois versos de efeito, que sozinhos já criaram um quadro lindo na minha imaginação: "It hasn't been this bright in a century and a third" (Não tem sido tão brilhante em um século e um terço) e "You've got this power over me" (Você tem esse poder sobre mim).

Elvis Perkins dá à mulher amada os mesmo poderes da Lua sobre a terra. Ela ilumina as noites, tem grande influência nas marés e em tudo quanto é ciclo; na fertilidade, crescimento e colheita de todas as coisas; dos nossos fios de cabelo às grandes Secóias da Califórnia. Realmente, os mesmos poderes que quem amamos tem sobre nós.

Reconheço que não foi uma ideia muito inovadora comparar o ser amado com a Lua que, apesar de uma imagem muito bonita, também é bastante comum no universo lirico mundial. Mas, o que me me encanta é que, de alguma forma, mesmo não sendo tão original falar da mulher amada que, como a lua, intocável e inacessível, sequer sabe da sua existência, mas influencia e ilumina a escuridão que se fazia por mais de século em sua vida, Elvis me despertou algo que jazia muito profundo em mim, e tem me feito olhar, novamente, com mais atenção e reverência a beleza das pessoas que se orbitam e se influenciam, umas às outras outras, através dessa força gravitacional irresistível que é o amor.

sexta-feira, 1 de julho de 2016

O Arquipélago

Apesar de "O Arquipélago" ser, também, o nome da última parte da saga "O Tempo e o Vento", do Érico Veríssimo, que eu adoraria fosse o tema de hoje, ainda não tomei fôlego para lê-la, portanto, falaremos do arquipélago tradicional, o conjunto de ilhas, mesmo.

Desde que me entendo por gente ouço, soando pelas bocas do mundo todo, a frase "nenhum homem é uma ilha", máxima que nos lembra sobre nossa existência ser coletiva, conectada e interdependente, uns com os outros. Nos últimos anos, com a constante observação e, porque não, exploração de mim mesmo, me deparei com uma espécie ecossistema fisiopsicológico singular, complexo, quase autossuficiente  veja bem: quase  que existe dentro das minhas fronteiras. Então me veio a pergunta: será que não somos, mesmo, uma ilha?

Por curiosidade histórica, pesquisei sobre a tal frase que me provocou estas reflexões e descobri que ela foi cunhada por John Donne, um poeta inglês, e publicada, em 1624, na obra "Devoções para Ocasiões Emergentes”, composta por vários tomos  coincidentemente, também assim é o "Tempo e o Vento", do Veríssimo. Um desses tomos é o "Meditações XVII", no qual se lê a famosa: "Nenhum homem é uma ilha, sozinho em si mesmo; cada homem é parte do continente, parte do todo". Como bônus da pesquisa, também entendi o título do livro "Por quem os sinos dobram" do Ernest Hemingway, publicado em 1940. Inspirado por Donne, Hemingway usa o final da meditação sobre o homem-continente como ideia central, título e palavras de abertura do livro. Aí vai: "...a morte de qualquer homem me diminui, porque eu sou parte da humanidade; e por isso, nunca procure saber por quem os sinos dobram, eles dobram por ti”.

Agora, voltando à questão da nossa solitude e conexões, é impossível negar natureza coletiva da nossa existência. Vivemos, sem sombra de dúvidas, em uma conexão inevitável uns com os outros, no mundo inteiro, com o universo todo, inclusive. E como alertou John Donne, devemos considerar toda interação como necessária, como mecanismo de evolução e crescimento individual e, por consequência, coletivo. Por isso escrevi o "quase" autossuficientes lá no segundo parágrafo.

Mas, ao mesmo tempo, não podemos negar a nossa natureza de ilhas, como seres completos em nós mesmos. Mesmo que, às vezes, meio desequilibrado, o nosso ecossistema pessoal é completo em si mesmo, complexo e feito para se sustentar, perfeitamente, quando sozinho. Exatamente como o ecossistema de uma ilha, cada um de nós tem as suas peculiaridades e a capacidade de permanecer em harmonia consigo mesmo, sem necessidades de grandes influências externas. 

Lembro, ainda, como me lembraram numa palestra que, apesar da aparência isolada, todas as ilhas estão fisicamente conectadas umas às outras pelas profundezas do mar. Elas também interagem e se influenciam pelas correntes marítima e, até mesmo, pelas correntes invisíveis de ar. Ou seja, não importa o quão fundo ou quão invisível esteja a conexão, ela existe e é real. John Donne estava parcialmente correto. Somos ilhas, sim! Completos em nós mesmos. Mas, independente se grandes e firmes porções de terra, ou minúsculos bancos de areia ou rocha, estamos inevitavelmente conectados, nos complementamos, formando um grande e belo arquipélago.