sábado, 28 de novembro de 2015

Responsabilidade

Após acompanhar histórias tristes de abusos de crueldade inconcebível contra as mulheres, através da campanha #meuamigosecreto e conversar com algumas amigas e entender seus motivos - que jamais questionarei, pois existem e são sólidos - peguei-me preocupado com os desdobramentos de tal atitude que, mesmo lotado de evidentes boas intenções, não esteve livre de violência em suas manifestações.

Em tempos de vida sexual livre e desregrada, certamente cometemos muitos erros. Erros que, por sermos imaturos, não sabemos evitar ou lidar com seus desdobramento. Culpas e complexos, raiva e desespero. A pressão disso tudo dentro do coração é imensa. Mas, precisamos averiguar as formas de nos libertarmos disso sem causarmos uma outra avalanche de erros e tentarmos limpar lama com mais lama, combater o mal com o mal. 

Na vida é imprescindível responsabilidade, toda atitude gera conseqüências, enfim, não há almoço grátis. Emmanuel, inspirado pelas atitudes do Cristo, dá boas dicas sobre isso no Capítulo 26 de seu livro "Vida e Sexo", psicografado por Chico Xavier.


26. À Margem do Sexo

"Lembrai-vos daquele que julga em última instância, que vê os movimentos íntimos de cada coração e que, por conseguinte, desculpa muitas vezes as faltas que censurais, ou reprova o que relevais, porque conhece o móvel de todos os atos. Lembrai-vos de que vós, que clamais em altas vozes  anátema, tereis, quiçá, cometido faltas mais graves.” - Do item 16, do Cap. X, de "O Evangelho Segundo o Espiritismo". 


Companheiros da Terra, à frente de todas as complicações e problemas do sexo, abstende-vos de censura e condenação. Todos nós – os Espíritos em aperfeiçoamento nos climas do Planeta – estamos emergindo de passado multimilenar, em que as tramas da alma se entreteciam em labirintos de sombra, para que as bênçãos do aprendizado se nos fixassem no espírito. Ainda assim, achamo-nos todos muito longe da meta por alcançar. 

Se alguém vos parece cair, sob enganos do sentimento, silenciai e esperai! Se alguém se vos afigura tombar em delinqüência, por desvarios do coração, esperai e silenciai!... Sobretudo, compadeçamo-nos uns dos outros, porque, por enquanto, nenhum de nós consegue conhecer-se tão exatamente, a ponto de saber hoje qual o tamanho da experiência afetiva que nos aguarda amanhã. 

Calai os vossos possíveis libelos, ante as supostas culpas alheias, porquanto nenhum de nós, por agora, é capaz de medir a parte de responsabilidade que nos compete a cada um nas irreflexões e desequilíbrios dos outros. Somos todos peças integrantes de uma só família, operando em dois mundos, simultaneamente - aquele das inteligências corporificadas no plano físico e aquele outro das inteligências desencarnadas que se domiciliam nas regiões da mesma Terra que habitais, disputando convosco, tanto quanto igualmente entre si, a aquisição de recursos substanciais da evolução. 

Não dispomos de recursos para examinar as consciências alheias e cada um de nós, ante a Sabedoria Divina, é um caso particular, em matéria de amor, reclamando compreensão. À vista disso, muitos de nossos erros imaginários no mundo são caminhos certos para o bem, ao passo que muitos de nossos acertos hipotéticos são trilhas para o mal de que nos desvencilharemos, um dia!

Abençoai e amai sempre. Diante de toda e qualquer desarmonia do mundo afetivo, seja com quem for e como for, colocai-vos, em pensamento, no lugar dos acusados, analisando as vossas tendências mais íntimas e, após verificardes se estais em condições de censurar alguém, escutai, no âmago da consciência, o apelo inolvidável do Cristo: 

“Amai-vos uns aos outros, como eu vos amei”.


quinta-feira, 26 de novembro de 2015

Frankenstamos

Li o Frankenstein [Mary Shelley, 1831] no logínquo ano de 1999, século passado, durante a faculdade de Direito. Afinal, era – e sempre será – impossível ter uma rotina de leitura exclusivamente jurídica. Lembro-me que a leitura foi deliciosa e leve, apesar do tema sombrio, a narrativa e as ideias que ela despertava eram muito boas.

Comumente, usa-se o "mito do Frankenstein" nos debates entre religião e ciência, nas questões éticas médicas e necrológicas, ou, ainda, nas discussões psicológicas sobre preconceitos, das mais profundas às mais epiteliais, no estilo: quem vê cara, não vê coração. Mas, basicamente, foram muitas dessas questões, em voga no início do Sec. XIX, que levaram a autora a criar a história. Eu também pensava assim, até conhecer o Orlando.

Orlando é um desses livreiros que ficam na rua, com seus livros alinhados nas calçadas e muros. Enquanto eu examinava os livros, ele contou que veio de bicicleta, de Salvador à São Paulo, no início dos anos 70, atrás de um sonho. Mas está indo embora da cidade porque, depois de mais de 30 anos, não havia mais nada daquele sonho em sua vida, e ele não se reconhecia mais na sua história. Por isso era seu último dia naquele ponto e que, ao sair, levaria só duas caixas com livros que poderiam lhe dar algum dinheiro a mais lá na Bahia e deixaria o restante na rua, pra quem quisesse pegar. Me deu um livro de presente e eu lhe dei os dez reais que tinha no bolso, pra ajudar na passagem ou no que ele quisesse. Certamente ele precisaria mais do que eu.

Em meio àqueles livros todos, estava uma edição do Frankenstein, tradução do Ruy Castro que, junto com a história do Orlando, me levou a uma nova reflexão: O quanto de nós não é nosso? Pernas torneadas; braços musculosos; sonhos e obrigações; o quanto dos outros, que não combina com o que realmente somos, vamos adicionando e carregando, sem perceber a criatura disforme que nos tornamos? A ausência de amor próprio seria por que, ao olharmos no espelho, só vemos um monstro? Será que estamos nos perseguindo e nos autodestruindo por não nos reconhecermos mais? Nesse caso, somos todos os personagens do livro em um só : o Dr. Frankenstein, cientista e criador do monstro; o monstro; e a população que, assustada, persegue e quer destruir o monstro.

Até quando, pela desatenção à nossa essência, passaremos a vida nos deformando e nos aniquilando, ou nos deixando aniquilar por quem nos vê como monstros? Ora, é evidente que todos nós, monstros ou não, só queremos dar e receber amor nas suas mais variadas formas. Precisamos nos conhecer melhor e evitar nos tornarmos um Frankenstein de retalhos equivocados. O Orlando demorou pra perceber que o peso extra que carregava era dos adendos estranhos costurados à sua alma e, ao perceber, se despojou deles e foi atrás de se reencontrar, e ainda quer escrever um livro com suas memórias! E foi mesmo. No fim da tarde, estavam apenas os livros pela calçada e uma folha de sulfite na parede, onde se lia : Sirva-se.


quinta-feira, 19 de novembro de 2015

Poema em Prosa


És tão aconchegante que qualquer idéia de deixar-te parece mais martírio à redenção.

Tens algo de oásis no deserto inóspito do teu ser (que mostras).

Tens calma e pudor, e ira e ódio. E magias de desmanchar tempo e espaço.

Se tens tanto e tão pouco tenho, sequer lucidez, dai-me que seja a tua treva, a tua prisão; ou me receba no oásis do coração, e deixe que eu enfeite teu ócio mágico.



Umuarama, Paraná, Verão de 2000

terça-feira, 10 de novembro de 2015

Soneto Continente

A Augusto dos Anjos


Ao ver-me relutante e imanifesto
Aos prazeres que, supunha, eu sentia
Chamar-me-ia de louco inconfesso
Em cujas veias corre anestesia

Mas, oculto, sob largas, fundas crostas
Há furioso vulcão que não se mostra
A derreter-me a casa da razão
A fumegar-me, a lava, o coração

Tal qual velho, seguro continente
Por eras desbastado, fiz-me forte
Enclausuro, fundas, as vis torrentes

Sou planeta que, ao longe, crê-se inerte
Mas funde vida, calma e docemente
Sobre a força e o caos da endosfera ardente


quinta-feira, 5 de novembro de 2015

Lúcia

Fui à Cruzeiro do Oeste, no Paraná, minha terra natal, e passei em frente ao Educandário Nossa Senhora de Fátima, também chamado, pelos íntimos, de Colégio das Irmãs. Obviamente um colégio de freiras, católico. Foi ali que entre 1986 e 1988 cursei a Pré-Escola, o Primeiro e o Segundo ano do que, naquele tempo, chamávamos de Primário. Dentre um trilhão de coisas, sensações, cheiros e sentimentos despertados, me lembrei da Lúcia.

Lúcia era a menor aluna da sala; bem magra; cabelos loiros, meio sebosos e desarrumados; de pele sempre corada de sol e com uns riscos de terra nas bochechas, às vezes na testa, às vezes nos dois; tinha os olhos verdes - talvez os primeiros olhos verdes que vi na vida – para os quais quase nunca olhava, pois ela passava a maior parte do tempo dormindo na aula, e como era natural meninos e meninas não se misturassem no "recreio", conversávamos pouco, se é que conversamos algum dia. Não lembro se foi no primeiro, no segundo, ou nos dois anos que estudamos juntos, só sei que isto está na minha memória há quase 30 anos.

As aulas começavam às oito da manhã, e até perto do recreio, umas nove e meia, só se viam os cabelos da Lúcia esparramados na carteira, cobrindo seu rosto, enquanto dormia. Era assim todos os dias, e eu ficava pensando no tanto de aula que ela estava perdendo. Às vezes, eu a invejava quando era eu quem estava morrendo de sono e a professora não me deixava dormir daquele jeito.

Não lembro se foi a Tia Terezinha, do primeiro ano, ou a Tia Hilda, do segundo que, quando próximos da hora do recreio, acordou a Lúcia com bastante delicadeza e pediu, cochichando em seu ouvido, pra que ela fosse lavar o rosto. Quando Lúcia saiu da sala, a professora disse: "Tadinha, ajuda os pais, na roça, todos os dias antes de vir pra aula..."

Senti uma mistura de culpa com alívio, entendi porquê ela podia dormir na aula e eu não. Percebi o quão sortudo eu era, por não ter que acordar todos os dias às três da manhã para ajudar meus pais na roça antes da aula – foi o que me disseram, mais tarde, era a rotina dos "boia-frias". Me ocorreu, pela primeira vez, que as vidas dos outros podem ser muito diferentes da minha. É claro que tudo isso aconteceu com uma profundidade de uma poça d´água na minha mente infantil, mas foi marcante.

Não dominava os conceitos, mas o sentimento e o exemplo foram gravados em mim. Por isso foi fácil entender, durante a faculdade de Direito, a Isonomia de Aristóteles, que diz: "devemos tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de sua desigualdade"; ou aquela palestra espírita na qual diziam que "não devemos julgar os outros, pois não sabemos a batalha diária de cada um, das limitações que tem e o peso que carrega no coração". Foi só me lembrar da Lúcia.

Em 1989, me mudei de cidade e nunca mais soube daquela amiguinha, mas espero que ela tenha conseguido, de alguma forma, ser feliz. Muito obrigado, Lúcia e professora, os seus pequenos, mas pertinentes exemplos, ainda fazem toda a diferença.

terça-feira, 3 de novembro de 2015