Fui à Cruzeiro do Oeste, no Paraná, minha terra natal, e passei em frente ao Educandário Nossa Senhora de Fátima, também chamado, pelos íntimos, de Colégio das Irmãs. Obviamente um colégio de freiras, católico. Foi ali que entre 1986 e 1988 cursei a Pré-Escola, o Primeiro e o Segundo ano do que, naquele tempo, chamávamos de Primário. Dentre um trilhão de coisas, sensações, cheiros e sentimentos despertados, me lembrei da Lúcia.
Lúcia era a menor aluna da sala; bem magra; cabelos loiros, meio sebosos e desarrumados; de pele sempre corada de sol e com uns riscos de terra nas bochechas, às vezes na testa, às vezes nos dois; tinha os olhos verdes - talvez os primeiros olhos verdes que vi na vida – para os quais quase nunca olhava, pois ela passava a maior parte do tempo dormindo na aula, e como era natural meninos e meninas não se misturassem no "recreio", conversávamos pouco, se é que conversamos algum dia. Não lembro se foi no primeiro, no segundo, ou nos dois anos que estudamos juntos, só sei que isto está na minha memória há quase 30 anos.
As aulas começavam às oito da manhã, e até perto do recreio, umas nove e meia, só se viam os cabelos da Lúcia esparramados na carteira, cobrindo seu rosto, enquanto dormia. Era assim todos os dias, e eu ficava pensando no tanto de aula que ela estava perdendo. Às vezes, eu a invejava quando era eu quem estava morrendo de sono e a professora não me deixava dormir daquele jeito.
Não lembro se foi a Tia Terezinha, do primeiro ano, ou a Tia Hilda, do segundo que, quando próximos da hora do recreio, acordou a Lúcia com bastante delicadeza e pediu, cochichando em seu ouvido, pra que ela fosse lavar o rosto. Quando Lúcia saiu da sala, a professora disse: "Tadinha, ajuda os pais, na roça, todos os dias antes de vir pra aula..."
Senti uma mistura de culpa com alívio, entendi porquê ela podia dormir na aula e eu não. Percebi o quão sortudo eu era, por não ter que acordar todos os dias às três da manhã para ajudar meus pais na roça antes da aula – foi o que me disseram, mais tarde, era a rotina dos "boia-frias". Me ocorreu, pela primeira vez, que as vidas dos outros podem ser muito diferentes da minha. É claro que tudo isso aconteceu com uma profundidade de uma poça d´água na minha mente infantil, mas foi marcante.
Não dominava os conceitos, mas o sentimento e o exemplo foram gravados em mim. Por isso foi fácil entender, durante a faculdade de Direito, a Isonomia de Aristóteles, que diz: "devemos tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de sua desigualdade"; ou aquela palestra espírita na qual diziam que "não devemos julgar os outros, pois não sabemos a batalha diária de cada um, das limitações que tem e o peso que carrega no coração". Foi só me lembrar da Lúcia.
Em 1989, me mudei de cidade e nunca mais soube daquela amiguinha, mas espero que ela tenha conseguido, de alguma forma, ser feliz. Muito obrigado, Lúcia e professora, os seus pequenos, mas pertinentes exemplos, ainda fazem toda a diferença.
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