quinta-feira, 26 de novembro de 2015

Frankenstamos

Li o Frankenstein [Mary Shelley, 1831] no logínquo ano de 1999, século passado, durante a faculdade de Direito. Afinal, era – e sempre será – impossível ter uma rotina de leitura exclusivamente jurídica. Lembro-me que a leitura foi deliciosa e leve, apesar do tema sombrio, a narrativa e as ideias que ela despertava eram muito boas.

Comumente, usa-se o "mito do Frankenstein" nos debates entre religião e ciência, nas questões éticas médicas e necrológicas, ou, ainda, nas discussões psicológicas sobre preconceitos, das mais profundas às mais epiteliais, no estilo: quem vê cara, não vê coração. Mas, basicamente, foram muitas dessas questões, em voga no início do Sec. XIX, que levaram a autora a criar a história. Eu também pensava assim, até conhecer o Orlando.

Orlando é um desses livreiros que ficam na rua, com seus livros alinhados nas calçadas e muros. Enquanto eu examinava os livros, ele contou que veio de bicicleta, de Salvador à São Paulo, no início dos anos 70, atrás de um sonho. Mas está indo embora da cidade porque, depois de mais de 30 anos, não havia mais nada daquele sonho em sua vida, e ele não se reconhecia mais na sua história. Por isso era seu último dia naquele ponto e que, ao sair, levaria só duas caixas com livros que poderiam lhe dar algum dinheiro a mais lá na Bahia e deixaria o restante na rua, pra quem quisesse pegar. Me deu um livro de presente e eu lhe dei os dez reais que tinha no bolso, pra ajudar na passagem ou no que ele quisesse. Certamente ele precisaria mais do que eu.

Em meio àqueles livros todos, estava uma edição do Frankenstein, tradução do Ruy Castro que, junto com a história do Orlando, me levou a uma nova reflexão: O quanto de nós não é nosso? Pernas torneadas; braços musculosos; sonhos e obrigações; o quanto dos outros, que não combina com o que realmente somos, vamos adicionando e carregando, sem perceber a criatura disforme que nos tornamos? A ausência de amor próprio seria por que, ao olharmos no espelho, só vemos um monstro? Será que estamos nos perseguindo e nos autodestruindo por não nos reconhecermos mais? Nesse caso, somos todos os personagens do livro em um só : o Dr. Frankenstein, cientista e criador do monstro; o monstro; e a população que, assustada, persegue e quer destruir o monstro.

Até quando, pela desatenção à nossa essência, passaremos a vida nos deformando e nos aniquilando, ou nos deixando aniquilar por quem nos vê como monstros? Ora, é evidente que todos nós, monstros ou não, só queremos dar e receber amor nas suas mais variadas formas. Precisamos nos conhecer melhor e evitar nos tornarmos um Frankenstein de retalhos equivocados. O Orlando demorou pra perceber que o peso extra que carregava era dos adendos estranhos costurados à sua alma e, ao perceber, se despojou deles e foi atrás de se reencontrar, e ainda quer escrever um livro com suas memórias! E foi mesmo. No fim da tarde, estavam apenas os livros pela calçada e uma folha de sulfite na parede, onde se lia : Sirva-se.


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