São demais os perigos desta vida
Para quem tem paixão, principalmente
Quando uma lua surge de repente
E se deixa no céu, como esquecida.
E se ao luar que atua desvairado
Vem se unir uma música qualquer
Aí então é preciso ter cuidado
Porque deve andar perto uma mulher.
Deve andar perto uma mulher que é feita
De música, luar e sentimento
E que a vida não quer, de tão perfeita.
Uma mulher que é como a própria Lua:
Tão linda que só espalha sofrimento
Tão cheia de pudor que vive nua.
Os versos acima são a fala de abertura para o primeiro ato da peça o "Orfeu da Conceição" (1956), escrita por Vinícius de Moraes e musicada por Tom Jobim. Foi primeira parceria entre os dois, parceria que, mais tarde, geraria uma revolução na história da música popular Brasileira. Posteriormente, em 1967, foram publicados como "Soneto do Corifeu", na segunda edição ampliada, do Livro de Sonetos, como um dos 25 poemas acrescentados aos 35 da primeira edição, de 1957. Ambas as edições foram organizadas pelo próprio Vinícius de Moraes. Mais tarde, pelas mãos de Toquinho, outro parceiro do poeta, o soneto se transformou em música e, sob o título de "São Demais os Perigos Dessa Vida", dá nome ao disco de 1971 de Toquinho e Vinícius.
Minha história com o Vinícius de Moraes é antiga. Ele se ausentou do mundo um mês antes do meu nascimento, em 1980 e, mesmo não tendo compartilhado o palco da existência com ele, desde a mais longínqua memória de infância, me recordo do sentimento de carinho que despertava em mim aquela gravura que o retratava, grisalho e calvo, com um nariz de batata, no encarte do disco "A Arca de Noé". E, enquanto crescia, continuei a descobrir, em sua obra, ecos perfeitos para os meus sentimentos, o que fez com que o carinho infantil se tornasse a admiração e respeito de um pupilo pelo mestre. Inevitável, tornei-me poeta.
Há semanas atrás, através de um exercício para um curso de poética que estou fazendo, procurando meus poemas preferidos para montar uma antologia, reencontrei o Soneto do Corifeu. Diria que ele não é só um dos meus poemas preferidos; ele é o mais importante deles. Foi o primeiro que, lá longe, na tenra juventude, me tocou fundo na alma; foi o primeiro que decorei e, sem jamais esquecê-lo, ainda o declamo decor. Hoje, menos leigo sobre a língua portuguesa e a poética, me espantei ao perceber que herdei, dos versos do Corifeu, importantes elementos líricos da minha poesia: a lua, testemunha silenciosa de todos nós, pura, intocável e inevitável; a solidão da noite, cuja calma, silêncio e solidão amplificam as mínimas e mais íntimas marolas sentimentais em tsunamis invencíveis; os perigos da paixão; a beleza constante da mulher e uma tristeza inerente a todo ser vivente, mas que é leve, expressa na cadência melancólica de cada palavra versificada.
E você, tem algum poema preferido, ou que foi importante na sua história? Que tal eleger alguns e aproveitar o acesso a regiões interiores, que só a poesia dá, para se conhecer ou se reencontrar? Faça a sua antologia de poemas e surpreenda-se quando vir, nela, um belo retrato seu.
Aproveite e ouça a canção "São Demais os Perigos Dessa Vida", de Toquinho e Vinícius, com direito ao Vinícius declamando o Soneto do Corifeu logo na introdução.
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