sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Um feliz ano passado, e um próspero ano que vem!

A cada final de ano é inevitável uma retrospectiva, ao menos pessoal. São, por isso, também, inevitáveis os sustos. Ao lembrarmos de 2016, teremos uma sequência de catástrofes; mortes de grandes seres-humanos e muitas pessoas queridas; atitudes equivocadíssimas em todos os setores, tudo isso deflagrando ansiedades e caos em todos nós. E não precisamos ser mais atentos para também percebermos uma infinidade de coisas maravilhosas que aconteceram; descobertas científicas; mudanças em paradigmas morais e éticos; novas percepções filosóficas; despertares cognitivos e guinadas de atitudes que estão semeando dias melhores no futuro. E, não se engane, os anos passados foram exatamente a mesma coisa.

O mal estar da retrospectiva é uma questão de foco. E foco é uma questão de treino, um treino constante, muito simples, mas não muito fácil, de desviar a nossa vontade instintiva de dar mais atenção às coisas ruins do que às boas. E é se aproveitando disso que a indústria da informação alimenta e fortalece o dito popular, que merece ser fortemente combatido, que diz “felicidade não dá audiência”. Sem um pensamento atento no bem que nos circunda, e prática constante da crítica sobre toda a informação que nos chega, provavelmente continuaremos pensando que existe muito mais mal do que bem e, desta forma, ficaremos cada vez mais preocupados, desanimados e cansados. Procuraremos cada vez mais meios de fuga e, alienados da realidade, seremos apenas massa de manobra, escravos do medo que por motivos torpes, grupos e instituições investem alto para nos incutir.

É por isso que pensamento crítico e positivo, o contato com leituras, música, arte, conversas e atitudes construtivas são importantes, eles criam uma barreira contra esse derrotismo de boutique, que é a nova moda. Reclama-se, ataca-se porque é mais fácil do que entender e propor uma mudança racional. É claro que há a necessidade do entretenimento, é fisiológica, tudo precisa de descanso, mas é perigoso quando há apenas ele que, em excesso, se torna mais uma das várias formas de fuga da realidade que recorremos quando não queremos enfrentar os fatos cotidianos, que não são fáceis e, certamente, continuarão cada vez mais difíceis, ainda mais se não nos prepararmos para encará-los.

Mesmo sendo uma marcação psicológica, o final do ano é um tempo de repensar a vida, de se recolocar como um ser pensante e capaz de mudanças reais, se reconectar com o mundo, com as pessoas e, principalmente consigo mesmo. A energia e o tempo que se gasta reclamando poderia estar sendo usada para resolver os problemas e redefinir metas de vida. O ano de 2016 foi, sim, difícil, eu diria desafiador, como foram todos os outros anos. Levamos sustos, sentimos dores que nos possibilitaram atentar para grandes verdades e sintomas sociais e culturais que merecem atenção, cuidado e atitudes reais, enérgicas, porém sempre amorosas de resolução e mudança. E que, em 2017, os desafios sejam ainda maiores.
Um feliz ano novo a todos.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

Obrigado meu amigo, meu irmão

Deslizes na vida acontecem pelos mais variados motivos, inclusive por motivos externos, de outros convivas, que nos pregam peças e nos colocam em maus lençóis. Todos nós, imagino que sem exceção, já passamos por alguma situação difícil que a única reação foi a inércia, aquela sensação de impotência, de estarmos sozinhos, desamparados, sem condições de agir.

Nessas horas, tudo o que desejamos é que aparecesse alguém para nos ajudar, que nos estendesse a mão, nos colocasse em pé e, com um abraço e palavras tranquilas, nos acalmasse dizendo: "Fica tranquilo, eu estou aqui com você e vou te ajudar. Isso tudo vai passar. Confia em mim. Tudo vai ficar bem."

Sem a intervenção desse tipo de amigo prestativo, que nos socorre e, nos tirando da apatia, nos dá coragem e direção segura a seguir, provavelmente entraríamos numa fria, meteríamos os pés pelas mãos e, decerto, seríamos carregando um belo rol de arrependimentos por sabe-se lá quantos anos.

E, convenhamos, seria natural, que pela importância da ajuda que tal amigo deu, nos lembrássemos dele em várias situações, principalmente no seu aniversário, quando ligaríamos pra ele, enviaríamos algum presente simbolizando o afeto e a gratidão pela sua atitude.

Entendo que o Natal seja algo assim. É quando celebramos um amigo desses, um irmão, ele preferia que o chamássemos de irmão para ressaltar a estreiteza da relação que tinha com a gente. Esse irmão veio durante tempos difíceis, de barbárie, para nos dar uma ajuda, uma direção a seguir. Disse que se seguíssemos aquelas dicas, não nos daríamos tão mal da próxima vez em que enfrentássemos uma situação difícil.

Fez tanta diferença, que repetimos as suas dicas até hoje, mais de dois mil anos depois. E, se ainda estamos passando por dificuldades, mesmo depois das dicas todas dadas, imagina como estaríamos sem elas? Talvez nem haveria mais humanidade.

Mas por que ainda insistimos em negar uma mensagem de amor, compaixão, respeito, comportamento ético, disciplina, estudo, prática do bem, caridade desinteressada e amor irrestrito? A quem interessa? Parece-me que só aos orgulhosos, invejosos que, na preguiça de seguir o exemplo, que dá trabalho, preferiu desdenhar à entender, complicar à praticar. Não sejamos essas pessoas.

Sejamos razoáveis, racionais, dispamo-nos dos preconceitos, ignoremos os detalhes inúteis e foquemos na mensagem, nas dicas sobre um melhor viver, que são úteis. A grandeza da ajuda, a utilidade da mensagem deveria ter suplantado qualquer outro aspecto material, superficial sobre o mensageiro.

Se acha difícil seguir as dicas, fique tranquilo, o tal amigo continua do seu lado pra te ajudar nas tentativas e socorrer nos erros. Com a prática tudo fica cada vez mais fácil. E se, algum dia na história humana, estabelecemos o dia 25 de Dezembro para nos lembrarmos desse amigo, por que não aproveitar a ocasião? Mesmo que a data seja aleatória ou apenas simbólica, a ajuda foi real e das mais importantes. A mão foi estendida pra você, estenda sua mão de volta, segure firme, levante-se e agradeça.

Um feliz natal pra todos nós!

domingo, 18 de dezembro de 2016

Reforçamo-nos, sempre.


Costumo ler, diariamente, o livro Fonte Viva, de Emmanuel, psicografado por Chico Xavier. A cada dia leio um dos pequenos textos, pequenas lições, interpretações do Evangélho, para se refletir ao longo do dia e implementá-las na vida, na prática cotidiana.

E foi numa dessas leituras, logo cedo, que me deparei com este texto, o de número 21. Encontrar palavras de Emmanuel sobre o tema de uma crônica que eu havia escrito 4 dias antes, me deixou muito feliz. É um leve sinal de que eu devo estar indo pelo lado certo. Se ainda não estou indo, ao menos já estou olhando para o lado certo.

Gosto muito dessas coincidências, quando a vida traz confirmações de que o caminho está certo. Por isso coloco o texto do Fonte Viva e o link para a minha crônica, para que sejam lidos em conjunto, pois eles se completam e se ajudam. Seguem, os textos, a idéia que eles mesmos propagam: que o mais forte, o mais iluminado (o Emmanuel, claro) ajude o mais fraco, o menos iluminado (eu, é claro).

E que todos nós possamos nos aproveitar de mais esse feixe de luz do farol poderoso que são os livros de Emmanuel. E, assim, fortalecidos, termos as condições de praticar, de fato, uma vida mais harmoniosa e amorosa e nos tornarmos, a cada dia, a cada lição, a nossa luz um pouco mais forte.

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21. Maioridade

“…O menor é abençoado pelo maior.” — PAULO (Hebreus, 7.7)


Em todas as atividades da vida, há quem alcance a maioridade natural entre os seus parentes, companheiros ou contemporâneos.

Há quem se faz maior na experiência física, no conhecimento, na virtude ou na competência.

De modo geral, contudo, aquele que se vê guindado a qualquer nível de superioridade costuma valer-se da situação para esquecer seu débito para com o espírito comum.

Muitas vezes quem atinge a maioridade financeira torna-se avarento, quem encontra o destaque científico faz-se vaidoso e quem se vê na galeria do poder abraça o orgulho vão.

A Lei da Vida, porém, não recomenda o exclusivismo e a separatividade.

Segundo os princípios divinos, todo progresso legítimo se converte em bênçãos para a coletividade inteira.

A própria Natureza oferece lições sublimes nesse sentido.

Cresce a árvore para a frutificação. Cresce a fonte para benefício do solo.

Se cresceste em experiência ou em elevação de qualquer espécie, lembra-te da comunhão fraternal com todos.

O Sol, com seus raios de luz, não desampara a furna barrenta e não desdenha o verme. Desenvolvimento é poder.

Repara como empregas as vantagens de que a tua existência foi acrescentada. O Espírito Mais Alto de quantos já se manifestaram na Terra aceitou o sacrifício supremo, a fim de auxiliar a todos, sem condições.

Não te esqueças de que, segundo o Estatuto Divino, o “menor é abençoado pelo maior”. (Heb)


sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

A vista lá do alto

"Standing on a hill in my mountain of dreams
 Telling myself it's not as hard as it seems"
                              Jimmy Page e Robert Plant


Nas últimas semanas, todas as noite, assim que as missões diárias são cumpridas e estou voltando pra casa, me surge na cabeça a canção "Going to California", do Led Zeppelin. É inevitável, automático, quando me dou por mim, já estou cantarolando aquela melodia linda e nostálgica do Robert Plant, imaginando aqueles mandolins todos do John Paul Jones beliscando os acordes de violão do Jimmy Page e uma enxurrada de boas lembranças e sentimentos começam a escorrer da memória pelo corpo todo.

Mas, por que diabos "Going to California"? Sim, é uma música linda, mas faz anos que não a escuto. Não podia ser aquela do Sinatra que ouvi centenas de vezes na semana passada? Por quê meu subconsciente está indo buscá-la tão longe? Então a resposta vem clara quando me deparo, na letra da canção, com os versos que abrem este texto: "Em cima de um dos monte da minha montanha de sonhos; dizendo a mim mesmo que não é tão difícil quanto parece".

Obrigado, subconsciente! Então você está tentando me dizer, todas as noites, pra eu ficar tranquilo, pois ao escalar minha montanha de sonhos, por mais difícil que pareça, quanto mais alto eu chegar, menos difícil parecerá o trajeto até ali? E você tem razão! Os amigos alpinistas podem, com certeza, confirmar esse sentimento.

Quem tem sonho tem força. A humanidade não caminha sem estímulo, nada segue em frente sem estímulo. Foi assim que fomos forjados, sobrepondo sonhos e necessidades aos desafios que se apresentaram a cada momento. Da agricultura às tecnologias espaciais, todos os passos importantes na evolução humana foram dados para eliminar desconfortos. Seguimos abrindo portas, antes derrubando-as, agora, fazendo as chaves; galgamos os degraus da evolução com passos cada vez mais firmes.

Citando, também, J. R. R. Tolkien, grande influência na vida e música de Page e Plant, que escreveu na abertura do livro "O Hobbit" : "Um passo a frente e você já não está no mesmo lugar". Percebemos que, às vezes o passo é pro lado errado, mas isso é natural de quem está se sentindo incomodado, procurando por uma saída, uma solução urgente e, no calor do momentos só se preocupa em sair dali. E após o passo, num novo lugar, é inevitável que novos desafios se apresentem. É preciso estar sempre preparado e atento para este ciclo infinito de estímulos e possibilidades para exercitarmos nossa criatividade e força, tanto como indivíduos quanto sociedade humana.

Por isso tudo, antes de sentarmos e chorarmos desesperados, cansados e desanimados com as dores pelo corpo, com o desânimo na alma, tiremos os olhos do chão, e de cima de um dos montes da nossa montanha de sonhos, façamos como sugere a canção, apreciemos a paisagem e percebamos o quão alto chegamos. Relembremos dos desafios vencidos pelo caminho até aqui e de como, independente das dores que trouxeram, eles serviram para provar a nossa capacidade de superarmos obstáculos e sermos ainda melhores do que supomos ser. E é verdade, Robert, daqui de cima, não é tão difícil quanto parecia ser.


E aí está ela. Going to California, ao vivo em Earls Court, Londres, 1975 : 


sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

Ascendam as luzes


Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão - esta pantera -
Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!


O poema acima, Versos Íntimos, é de Augusto dos Anjos (1884-1914), e foi publicado em seu único livro “Eu”, em 1912. Comprova o que não é novidade pra ninguém: vivemos, e não é de hoje, em tempos obscuros. A vaidade, a hipocrisia, o egoísmo, o orgulho, o materialismo, e outros tantos tipos de conduta humana são como nuvens densas, cortinas espessas que bloqueiam a luz do sol da verdade e da vida e espantam o calor do amor que se propaga em suas ondas.

Se analisarmos os noticiários, poderíamos concluir que regredimos intelectual e moralmente, e isso nos afeta o pensamento e as atitudes cotidianas. Nas palavras do poeta : “O Homem, que, nesta terra miserável, mora entre feras, sente inevitável necessidade de também ser fera”. E muitos assim o são a contragosto, lutando contra intuições e consciência, fazendo o mal ao outro e um ainda maior a si mesmo, pelo medo de serem marginalizados, no afã de serem aceitos.

É claro que existem os que agem mal por conta própria, mas assim o fazem por ignorar o bem que podem fazer ou, ainda, por ignorar as implicações funestas que tais atos trazem para si. Se soubessem, se fossem despertados, convidados e convencidos a fazerem o bem, não por discursos hipócritas, mas por atitudes reais no cotidianos, fariam o bem sem dúvidas.

Há, na Bíblia, uma passagem na qual Jesus diz: “Ninguém, depois de acender uma candeia, a cobre com um vaso ou a põe debaixo duma cama; pelo contrário coloca-a sobre um velador, a fim de que os que entram, vejam a luz”. E é de focos de luz o que precisamos nesta hora escura pela qual passamos. 

Voltando aos noticiários, agora com mais atenção e focados no bem, é perceptível nossa evolução. A maioria das manchetes pedem pelo fim de más atitudes, antes consideradas normais. Nos tempos de Augusto dos Anjos, famílias se reuniam para assistir à enforcamentos em praça pública; jogavam gatos vivos, dentro de sacos, em fogueiras, para deleite e riso; os duelos de morte entre cavalheiros eram grandes eventos sociais; antes ainda, era costume assistir animais selvagens despedaçarem e devorarem seres humanos.

É bom ver que Hoje já não somos mais assim, apesar de  ainda existirem alguns resquícios disso. O sangue e a dor alheia ainda atraem atenção, conforme diz o historiador Leandro Karnal, pelo alívio de constatar que a vítima da vez não fui eu. É instinto. Mas, como ele também diz: “isso passa”. E está passando, é questão de tempo e trabalho, como demonstra a história. 

Se a hora é escura, façamos luz. Acendamos e ascendamo-la!  Sem esconde-la debaixo da cama da preguiça, da mesa da vaidade ou detrás das cortinas do medo. É preciso que quem tenha a luz ilumine o máximo possível.


PS: Se gostou desse texto, sugiro a leitora deste aqui.

sábado, 3 de dezembro de 2016

O meu Amor, em Neruda

Tenho a mania de conceituar as coisas. Talvez, inconscientemente, esteja usando do artifício de nomear para controlar, que tantos teóricos da psicologia e sociologia comentam. Apesar de supo-lo eficiente, não me parece tão saudável assim. E tento, ainda sem sucesso, minimizar um pouco o costume.

Dia desses, recebi uma ajuda importante no tema preferido: o Amor. Deparei-me com o Poema 44, do livro Cem Sonetos de Amor (Cien Sonetos de Amor, 1959), de Pablo Neruda. Neste livro, o poeta descreve o Amor, o Romance e seus derivados de cem formas diferentes e, neste poema, em especial, como um sentimento tão primordial e imenso, que transcende a si, que é e está em tudo, inclusive na sua própria ausência. Afinal, se em tudo que existe também existe o seu oposto, há amor mesmo quando não se ama; persiste a atitude mesmo quando cala-se o ato.


Poema XLIV

Saberás que não te amo e que te amo
posto que de dois modos é a vida,
a palavra é uma asa do silêncio,
o fogo tem uma metade de frio.

Eu te amo para começar a amar-te,
para recomeçar o infinito
e para não deixar de amar-te nunca:
por isso não te amo ainda.

Te amo e não te amo como se tivesse
em minhas mãos as chaves da fortuna
e um incerto destino desafortunado.

Meu amor tem duas vidas para amar-te.
Por isso te amo quando não te amo
e por isso te amo quando te amo.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

A dramática hora

São difíceis as despedidas. Dar adeus é ato de fé. Dar adeus é dar a Deus, mesmo. É ceder o controle e estar bem com isso. É resignar-me, reconhecer-me impotente sobre as rédeas do que eu não comando. É fiar-me ao futuro, confiar no reencontro sem depender reencontros. É confirmar-me quite, satisfeito com o que se deu até ali. A dramática hora de deixar partir.

E como abster-me em paz se tudo é aleatório; se a lógica da vida não é constante; se não há uma ordem sobre o caos do Universo infinito? Como abster-me em paz se a única força confiável é a minha; se o único ser potente sou eu? Como suportar a minha ausência nos fatos e a ausência dos fatos em mim? Como abster-me em paz? Se dar adeus é dar a Deus, a quem darei se não há Deus? A quem darei se não suporto só? Meu orgulho não me deixa, minha vaidade me suplanta. É por isso! Por isso são difíceis as despedidas!

Sim, são difíceis. São difíceis as despedidas, insisto. Pois adeuses são atos de fé. E dar adeus é dar a Deus. E há Deus. E Deus há de nos ajudar.

domingo, 20 de novembro de 2016

Livro : O Céu e o Inferno [1865, Allan Kardec]

Comentários ao capítulo IV - O Inferno, do livro O Céu e o Inferno, de Allan Kardec.
Capa para uma das muitas edições da Federação Espírita Brasileira


O Céu e o Inferno, ou A Justiça Divina Segundo o Espiritismo (Le Ciel et l'Enfer, ou La Justice Divine Selon Le Spiritisme), é um dos livros básicos do Espiritismo. Foi publicado por Allan Kardec, em 1º de agosto de 1865, após vários anos de observações e estudos. Composta de duas partes, a obra traz luz sobre o mecanismo da Justiça Divina, sempre de acordo com o princípio evangélico: "A cada um segundo suas obras".

A primeira parte do livro é dedicada a um exame crítico e filosófico, sob o paradigma Espírita, de vários assuntos relacionados aos sentimentos de medo e culpa que desenvolvemos, através dos tempos, tanto pela religião, quanto por outros aspectos culturais. Sentimentos e costumes que podem, conforme Kardec, ser eliminados através do exame racional aliado aos conhecimentos científicos conquistados pela humanidade durante sua evolução.

A segunda parte do livro é uma compilação de vários diálogos que Kardec estabeleceu com diversos espíritos, os quais descrevem as impressões e sentimentos advindos do processo de desencarne (morte). Desta forma, pode-se comparar as diferentes experiências conforme diferente é o carater de cada espírito comunicante.

Por ocasião de um seminário apresentado no dia 05 de Outubro de 2016, em aula do curso de Espiritismo da Federação Espírita de São Paulo, coube ao meu grupo discorrer sobre o capítulo IV - O Inferno. Tal capítulo trata dos temas: intuição das penas futuras; o inferno cristão imitado do inferno pagão; os limbos; quadro do inferno pagão; esboço do inferno cristão. Como resumo deste seminário, escrevi o texto abaixo, o qual gostaria de compartilhar com todos.

.......

Desde que se tem notícias, sempre houve, na humanidade, a idéia de uma vida futura, após a morte. E os detalhes de como seria essa vida futura variam conforme o nível evolutivo, científico, moral e religioso de cada civilização. Se materialista, a vida futura dos justos era envolta de prazeres materiais abundantes; e, quanto mais espiritualizada, os prazeres eternos do Paraíso iam se deslocando para a felicidade moral, e a leveza da consciência. Da mesma forma, os medos culturais e as dores físicas cotidianas eram transferidas para o Inferno. Por exemplo, civilizações que viviam cercadas de gelo, criaram infernos extremamente gelados; já as civilizações de climas quentes, criaram infernos insuportavelmente quentes. As civilizações mais avançadas, que já entendiam as relações morais da vida, criavam infernos onde as punições doíam na consciência, pela culpa das más atitudes tomadas em vida; em oposição ao paraíso, morada dos justos e de consciência tranquila, a desfrutar a paz eterna. E assim por diante.

Entretanto, apesar das várias formas de representação da vida futura, vale ressaltar o quanto esse conceito antiqüíssimo é comum e possui confluências conceituais, mesmo tendo se manifestado em várias civilizações diferentes, que não se comunicavam, espalhadas e distantes ao redor do mundo. O que nos leva a considerar a existência de uma intuição comum a todo ser humano, um conhecimento espiritual, que as almas de cada ser encarnado trazem consigo, sobre uma existência ditosa ou não, conforme a vida que se levou aqui na Terra.

Focaremos na idéia do Inferno, tema do capítulo estudado. Dada a antiguidade do conceito de que existe um lugar para punições na “vida pós morte”, podemos afirmar que o Inferno não é uma invenção da igreja Católica. O que ela fez foi apenas agregar sua interpretação e seus dogmas às idéias de inferno Pagãos, cultura que combatia e desejava subjugar, piorando o máximo possível a descrição dos sofrimentos. Desta forma, criava imagens horripilantes para causar bastante medo em seus fiéis, o suficiente para mantê-los tementes, sob controle e contribuindo financeiramente com a Igreja, sem questionar, afinal questionar a igreja levava ao Inferno, por toda a eternidade.

O inferno Católico é um lugar onde os espíritos de quem não é católico e levou uma vida desregrada, cheia de atos considerados pecado pelo catolicismo, recebem punições eternas e insuportáveis. É um inferno de caráter duplo, obviamente incongruente, pois pune, com dores físicas, espíritos que não possuem corpo físico. De certo, o caráter meio materialista meio espiritual desse inferno é resultado do estágio intermediário de evolução da humanidade ocidental durante o período no qual esse inferno foi confeccionado.

Por ser um amálgama de idéias de outras crenças não católicas, temos muitas coisas em comum entre o inferno Pagão e o Católico, sendo, como já dissemos, pioradas na descrição católica. Por exemplo, para os Pagãos, o Rei dos Infernos é Plutão, que está lá apenas gerenciando, recebendo e punindo quem por lá chegar, sem fazer qualquer outro tipo de juízo, ele faz o que deve ser feito pois esse é o seu trabalho e ponto. Já no inferno Católico, o Rei dos Infernos é Satanás que, além de punir as almas que por lá chegam, também é responsável por criar armadilhas e tentações para humanos desavisados, com o fim de angariar sempre mais almas para as suas masmorras.

Os pagãos situavam o Paraíso e o Inferno em um lugar físico. O Paraíso, para além das nuvens e o Inferno nas profundezas da terra. Os católicos, por muitos séculos, também fizeram o mesmo. Tiveram que mudar de idéia pela impossibilidade de manter tal crença, já que, após processos científicos de observação do subsolo e dos céus, comprovou-se não existir resquício algum de qualquer estrutura infernal sob a terra ou paradisíaca sobre as nuvens. Kardec aprofunda essas comparações no capítulo “quadro do inferno pagão”, citando a descrição de Inferno feita por François Fénelon, no conto sobre Telêmaco; e no capítulo “esboço do inferno cristão”, aprofunda-se sobre os estudos e digressões católicas, questionando-as e as comentando.

Sabendo que o Paraíso era para os bem aventurados, que viveram para a igreja Católica, seguiram todos os seus preceitos e pagaram todas as suas ‘tarifas’; e o Inferno era para os seus opostos, o que seria da vida futura daqueles Católicos que, por algum motivo falharam, que fizeram quase tudo certo e, por forças irresistíveis ao humano médio, pecaram? Como ficariam aqueles que se esforçaram muito mas, como a carne é fraca, se tornaram impuros para a vida eterna no Paraíso? Para cobrir essa lacuna, onde certamente estariam a maioria dos fiéis, criou-se o Purgatório, um lugar para onde iriam esses espíritos, os quais seriam eternamente punidos, de forma mais leve do que no inferno, mas aguardando a misericórdia divina, a intervenção dos Santos ou as orações dos vivos rogando para que Deus os perdoasse as faltas e os aceitasse no Paraíso. Desta forma, mesmo que ainda escravos dos prazeres da carne, ainda valia a pena tentar ser Católico e contribuir com o dízimo.

Entretanto, ainda restavam sem domicílio eterno as almas que não tiveram a oportunidade de conhecer a Luz de Deus, conforme os dogmas Católicos; que não foram batizados, que não participaram da comunidade Católica, o que viveram à margem de Deus, como os selvagens, as crianças mortas antes do batismo e todos os justos que vieram antes da vinda de Jesus Cristo. Para estes criou-se o Limbo. Limbo significa, literalmente, borda, margem, extremidade. 

Para os justos que viveram anteriores à Jesus, dizem ter havido um limbo especial, o Limbo dos Patriarcas, que foi extinto quando Jesus, após ser crucificado, foi até lá e perdoando os pecados, recolheu a todos que lá estavam, como prêmio por sua fé. Mas, subsiste até hoje e se manterá por toda a eternidade, conforme os Católicos, o Limbo para os demais espíritos, que lá passarão a eternidade, sem direito à salvação. Idéia extremamente contrária à infinita misericórdia e amor de Deus por toda a sua criação.

Todos estes cenários, independente da cultura nos quais foram criados, onde existam punições eternas sem chance de “revisão da pena”, são monumentos à imperfeição de Deus e, atualmente, por não terem lógica alguma são, também, um convite ao ateísmo. Criou-se a imagem de um Deus que pune, que julga, que cria os seres imperfeitos e os condena pelas atitudes imperfeitas inerentes a isto; um Deus quase humano, instável e não confiável. Essa imagem de Deus entra em conflito com a mensagem do Cristo e a intuição que todos temos, intimamente, sobre Ele, gerando dúvidas e desconfianças sobre a fé que deveríamos cultivar. Assim, conclui Kardec que o Dogma do Inferno, ao contrário de dar autoridade e respeitabilidade à Deus, apenas O diminui, transformando-O em uma entidade tão imperfeita e questionável quanto o ser humano, esta sim é uma verdadeira e imensa blasfêmia.

No sentido oposto, temos a doutrina Espírita e sua visão da vida futura, das Leis Universais, pelas quais os Espíritos colhem exatamente o que plantam e na justa proporção do que plantaram. Que tira o Paraíso de o Inferno de lugares físicos, exteriores ao ser humano e os coloca onde é mais lógico que estejam: sob a nossa responsabilidade, dentro de cada um de nós (como bem ilustra a capa da edição que ilustra o início deste texto). O Inferno somos nós mesmos e não mais os outros, como dizia Jean Paul Sartre.

Desta forma, o Espiritismo enaltece a perfeição de Deus, Sua justiça, misericórdia e amor infinitos. E, além de tudo, alinha-se com vários livros sagrados, principalmente a Bíblia e as palavras de Jesus Cristo, de forma harmoniosa, sem a necessidade de malabarismos interpretativos esdrúxulos e duvidosos.

Entretanto, por mais absurdas que seja a idéia do Inferno como local eterno e irreversível de punição, ainda é necessário que ela exista. Pelo temor que causam, são, para vários grupos de pessoas em estágios de evolução espiritual ainda primária, a única forma de limite de consciência, de provocar reflexões e frear atitudes contrárias às Leis Universais. Fica, portanto, à cargo do Espiritismo, o trabalho firme e constante, através da educação e da promoção da fé raciocinada, de combater estes conceitos defasados, ao ponto em que eles não sejam mais necessários, proporcionando a todo ser humano uma conexão direta e verdadeira com o amor, a justiça e a misericórdia, enfim, com a perfeição infinita de Deus.


quinta-feira, 17 de novembro de 2016

Guns n' Roses : Since I Don't Have You

Em 1994, os Guns n' Roses lançaram o single "Since I Don't Have You", o terceiro do disco "The Spaghetti Incident?". O disco é uma coletânea de covers que, dizem, a banda tocava "antes da fama". Quando uma banda faz isso, de voltar às raízes, é sinal de que estão tentando se reencontrar, reencontrar aquela "magia de antigamente". Não encontraram. Foi o último disco com a formação clássica.

Separados, depois de décadas foi que se encontraram. Reuniram-se, esse ano, para uma turnê mundial que está sendo ótima, tanto para os nostalgicos quanto para os que nunca haviam visto o Guns, de verdade, no palco.

Versão de uma música de 1958, dos Skyliners, "Since I Don't Have You" não tem quase nada de Guns n' Roses, como eles mesmos não tinham mais quando a gravaram. Mas traz, sempre muito vivo, esse sentimento, essa reflexão sobre as ausências. Pode uma coisa só valer por tudo o que se tem? Eu não tenho nada se não tenho você? A resposta é simples e lógica, mas como toda resposta simples e lógica, não se internaliza tão fácil.

Apesar da gente insistir, brigar, chorar pra que seja o contrário, é não tendo o que se quer que se descobre o que se precisa.



sexta-feira, 11 de novembro de 2016

De Deus


"Na semente, Deus é a árvore; na árvore, Deus é a semente."

Paulo Mendes Campos

(na crônica O Folclore de Deus. revista Manchete26/05/1962, da coletânea O Amor Acaba)

quarta-feira, 9 de novembro de 2016

sexta-feira, 4 de novembro de 2016

Cuide-se, bem


Pelo Universo, transitam os corpos celestes, cada um em sua trajetória, sempre cíclica. Alguns ciclos pequenos, perceptíveis a nós, como o do nosso planeta em relação ao sol, de 365 dias; outros, de tão imensos, passam quase que desapercebidos, como o do Sistema Solar em relação ao centro da Via Láctea, que dura em torno de 25.600 anos. É imenso! E sua imensidão não significa aleatoriedade.

É nessa imensidão que temos uma infinitude de corpos seguindo o seu trajeto, circulando uns ao redor dos outros. Atraem-se, encontram-se, impulsionam-se, combatem-se, chocam-se, aglutinam-se, estabilizam-se, unem-se, repelem-se, distanciam-se, numa dança marcada pelo sutil e monumental ritmo cósmico.

Tanto lá quando cá. Essa dança se replica em tudo, desde a infinitude imensa do universo, até a infinitude minúscula do subatômico. Se repete em toda a natureza que nos cerca, em todo átomo. Em nós, em nossas células e suas organelas; e por nós, em nossas relações sociais e afetivas. Não poderia ser de outra forma, fomos feito à imagem e semelhança da Inteligência Cósmica. Somos e compomos o Cosmos.

E seguindo nossa trajetória, encontros e desencontros nos causam leves desvios, alguns impulsionam, outros freiam, alguns apenas passam, outros desestabilizam. Desviamos, evitamos, mas, mesmo com nossa força de vontade, livre arbítrio e consciência, não nos furtamos de participar dessa dança maior, não escapamos das forças que nos colocam sempre de volta à órbita da nossa própria vida.

E por não sermos corpos inanimados, nos afeiçoamos, nos vinculamos, de forma mais ou menos profunda, a cada outro corpo que nos compartilha da rota, seja por muito ou pouco tempo. Trocamos forças e influências, sempre levamos algo conosco e oferecemos do que temos.

Mas, também é da dança o desencontro, o despedir-se, o ausentar-se. Disse Vinícius, com a autoridade que a poesia lhe concedeu: "A vida é arte do encontro. Embora haja tanto desencontro pela vida". Para todo encontro, sempre haverá a hora de partir, seja pelas estradas que se separam ou, até mesmo pela vida que se acaba. E cabe a nós estarmos atentos e preparados, de nos despedirmos sempre deixando gravados, da forma mais evidente e indelével, o amor e a gratidão por tudo o que foi compartilhado.

Guilherme Arantes, na canção "Cuide-se bem", canta o que seja, talvez, uma das mais bonitas mensagens de conforto e carinho que se pode deixar a quem segue, distanciando-se da nossa rota, para seguir a sua própria:


Cuide-se bem!
Perigos há por toda a parte
E é bem delicado viver
De uma forma ou de outra
É uma arte, como tudo

Cuide-se bem!
Tem mil surpresas à espreita
Em cada esquina mal iluminada
Em cada rua estreita do mundo

Pra nunca perder esse riso largo
E essa simpatia estampada no rosto

Cuide-se bem!
Eu quero te ver com saúde
E sempre de bom humor
E de boa vontade com tudo


Mas, sem nos esquecermos que tudo é sempre cíclico, toda tristeza pelas despedidas deve se converter em esperança, pois, em algum momento, depois do tempo que for, um novo encontro acontecerá. E que, nessa hora, estejamos bem. Enquanto isso, bailemos!



terça-feira, 1 de novembro de 2016

Gratidão


Estas são duas versões gráficas, feitas por Fábio Lonardoni, para o meu poema Gratidão, constante no livro O Pretérito Presente no Subjetivo. São sutilmente diferentes na interpretação e, como não consigo decidir qual é a melhor, publiquei as duas que estão lindas.










sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Inspirações


Quem faz um poema abre uma janela.
Respira, tu que estás numa cela abafada,
esse ar que entra por ela.
Por isso é que os poemas têm ritmo —
para que possas profundamente respirar.
Quem faz um poema salva um afogado.

                                                (Emergência, de Mário Quintana)



Tenho me voltado à poesia como quem se volta para a luz do sol após dias nublados. Como quem persegue aquele mísero raio de luz que, tímida, mas heroicamente, escapa por entre as nuvens e atinge a terra úmida e fria, que até então mortificava corpos e almas, para nele se aquecer, respirar fundo e, de braços abertos, peito estufado, deixar-se aconchegar em todas as dimensões do ser.

Insisto no poema como fator conectante entre o humano e o infinito; como uma estrada para o Belo, entre o que humanamente idealizo e o que infinitamente é; percurso que, em sinuoso aclive, descortina cada vez mais amplas e completas paisagens a se descrever; como construção íntima; como jornada de purificação.

Salvo-me nos versos como um naufrago em tudo o que flutua; como no colo de uma mãe, ou no abraço de um pai; na mão amiga que guia; na palavra de consolo que acalma; na brisa que acaricia a face; na segurança da chuva que disfarça a lágrima e lava a alma.

Se na vida rimas ou não rimas, é opção que ela mesma traz, tanto faz. Mas o ritmo, esse sim, inevitável capataz, açoita quem destoa da cadência, sem não antes avisar. Mas por ser, também, amigo, premia sempre a quem souber dançar.

É por isso que a arte é necessária à vida, como a pausa à música e, ao texto, o ponto e a vírgula. É preciso despertar-se ao sensível, ao invisível, ao metafísico. Redescobrir o que não se vê, saber dizer o que não se diz, tocar o intangível. Reconectar-se com essa esfera sutil por onde comunicamos tanta coisa, mas que, num oceano de amor revolto, em meio a tantas e turbulentas ondas de rancor, as inúmeras marolas de carinho passam despercebidas.

Acalmemos os amores, meus amores. Controlemos os tsunamis da paixão, acabemos com os vendavais, os tremores e a gritaria. Atentemo-nos às leves marolas, à brisa carinhosa, aos suspiros pacíficos da paz que nos convida incansavelmente a comungá-la. Ela não está distante, ela fala baixo. Sejamos nós os poetas ou os poemas, os artífices ou a matéria-prima, inspiremo-nos! Ouçamos, em silêncio, o Universo a recitar-se amorosamente.

domingo, 23 de outubro de 2016

Rachmaninoff : Piano Concerto n.2 em Dó menor, Op.18


Após receber péssimas críticas ao o seu primeiro concerto, o russo Sergei Rachmaninoff (1873 - 1943) entra em uma profunda depressão e bloqueio criativo que duraram vários anos. Ao sair desse tenebroso ciclo, compõe essa excelente peça, que é o Concerto n.2 em Dó Menor que, inclusive, é dedicado ao médico Nikolai Dahl, figura importante na sua recuperação psicológica. Considerada uma de suas melhores e mais famosas peças, foi tão aclamada que colocou o compositor, finalmente, entre os grandes concertistas da história. 

O segundo movimento é uma das coisas mais lindas que já ouvi na vida. Imbatível, de tirar lágrimas e arrepiar até os mais embrutecidos, com um tema melancólico e leve, que começa na flauta, toma forma no clarinete e vai crescendo e respirando até contagiar toda a orquestra e cada célula de quem está ouvindo.

Na música, as tonalidades menores são consideradas tristes, enquanto as tonalidades maiores são consideradas felizes, ensolaradas. Então, também é muito simbólico o concerto ter sido escrito em Dó menor. Mas, o mais bonito de tudo, é que o concerto começa em Dó menor e termina em Dó maior, como se simbolizasse, no desenvolver da peça, a luta e a vitória do compositor sobre a sua depressão.

Nas primeiras apresentações desse concerto, entre 1900 e 1901, o próprio Rachmaninoff foi o solista, ao piano. Nesse vídeo podemos ver a destreza e a maravilhosa interpretação da Anna Fedorova, ao piano, com a Filarmônica do Noroeste Alemão (Nordwestdeutsche Philharmonie), com regência de Martin Panteleev.


Sério... durante o segundo movimento, separe um lenço.





sexta-feira, 21 de outubro de 2016

Amor pelas paredes

Tarde da noite, voltando pra casa, cansado por um dia inteiro de trabalho, deparei-me com esse soneto em uma das paredes do metro Vila Madalena, aqui em São Paulo. Ele é nomeado pelo seu primeiro verso, pois o seu criador, o grande Luís Vaz de Camões (1524 - 1580), não colocava título em seus sonetos.


Quem vê, Senhora, claro e manifesto
O lindo ser de vossos olhos belos,
Se não perder a vista só em vê-los,
Já não paga o que deve a vosso gesto.

Este me parecia preço honesto;
Mas eu, por de vantagem merecê-los,
Dei mais a vida e alma por querê-los,
Donde já não me fica mais de resto.

Assim que a vida e alma e esperança,
E tudo quanto tenho, é tudo vosso,
E o proveito disso eu só o levo.

Porque é tamanha bem-aventurança
O dar-vos quanto tenho e quanto posso,
Que, quanto mais vos pago, mais vos devo.


Depois de alguns minutos de maravilhamento, percebi que, sem mencionar sequer uma vez a palavra amor, Camões descreve o que seria o tipo de amor mais bonito, que poucos acreditam existir e, até mesmo, se aventurar a experimentar. É um patamar do sentimento quando ele subsiste por si, se retroalimenta, que é seu próprio motivo e finalidade. Amor que se dá pelo simples motivo de que se dar amor é bom, por isso não depende de qualquer tipo de retribuição, presente ou futura, de quem quer que seja.

Desvinculado de qualquer motivação externa a si mesmo, esse tipo de amor sobreviveria ao tempo, à inevitável hora quando a jovem e bela companhia se transformar no velho e retorcido transtorno; permitiria, mesmo ausente o companheiro, estar presente o carinho, a lealdade e a fidelidade; e, destituída a posse doentia, inexistiria o ciúmes venenoso.

Este deveria ser, e talvez seja, o amor ao qual todos deveríamos buscar. Esse que, quanto mais se dá, mais se quer dar, como se vertesse de uma fonte infinita. É claro que nessa busca é preciso atenção e coragem. Sentimentos e necessidades psicológicas e físicas podem nos enganar, e nos levar a perceber, tarde demais, pelas dores, que o que achávamos amor não era nada além de tesão e vaidades, que os amores eram, na verdade troféus. Para que isso não aconteça, sugere-se sempre, antes de tudo, conhecer-se e saber sobre o que se passa dentro de si, o que se deseja da vida. Nada mais do que o exercício básico de um viver consciente.

Mas, independente dos riscos que corremos, das maldades do mundo, e da inevitabilidade dos tropeços, a mensagem primordial que me tocou fundo o coração através do soneto de Camões, é que ser amado é secundário, é resultado. O que não se pode, nunca, de forma alguma, por motivo algum, é ter medo de amar.

terça-feira, 18 de outubro de 2016

Comentário sobre o poema Caro Data Vermibus


Este é um poema que gosto muito. Primeiro, por ser bonito; segundo, pela sua feitura ter sido um processo longo. Finalizá-lo foi uma alegria imensa.

Da sua concepção, num papel rascunho do "Ministério Público do Paraná, em 2001, ao seu fechamento, para o livro, em 2013, descontados uns prováveis e não mais do que 4 anos de gaveta, foi quase uma década. Sim, talvez o poema mais demorado que já fiz. Mas foi realmente preciso vivenciar muitas coisas para condensar as idéias e imagens que ele me pedia. Foram anos de tentativas e retomadas e desistências na lida com estes versos.

É um poema que retrata um amadurecimento: do desespero do jovem desiludido ao racionalismo do quase adulto, ainda desiludido, mas um tanto mais forte.

Quase 10 anos em 14 versos. Até eu mesmo fico espantado!

Aproveite e leia o poema: Caro Data Vermibus

sexta-feira, 14 de outubro de 2016

A vida como obra de arte


No recém formado Estado Alemão, oficialmente unificado em 1871, surgiu a necessidade de se criar uma cultura em comum para que houvesse uma ligação cultural entre todos os territórios e, assim, surgisse o sentimento de nação entre todos. Para esse esforço se colocaram ao trabalho grandes intelectuais e artistas alemães, dentre eles, Friedrich Nietzsche e Richard Wagner.

Apesar da imagem de velho ranzinza que criaram de Nietzsche, havia na sua filosofia essa busca pela perfeição do homem e das ideias, de equalizar o que se pensa com o que se faz. Nada de novo! Afinal, desde que a humanidade descobriu o pensamento que se busca esse caminho para uma vida mais confortável e justa, mais perfeita o possível. E, para Nietzsche, essa busca pela perfeição da vida, era a mesma busca do artista. O que Wagner fazia na arte, tentando criar a arte completa, onde música, teatro, literatura e o que mais existisse, pudessem, unidos, se potencializar, criando uma forma de arte perfeita e potente, era o que todos deveriam fazer na vida, através do pensamento, unificar e dar coerência às ideias e atitudes, transformar o homem comum no Além-Homem, ou Super-Homem (Übermensch), perfeito e potente, como deveria ser a Nação Alemã.

Apesar de controversos os conceito do belo e do perfeito, podemos senti-los em intuições, na alma ou no subconsciente, quem sabe até mesmo no inconsciente. Por mais que busquemos realizar estes sentimentos e intuições, jamais conseguimos reproduzi-los na matéria que manipulamos, pois o perfeito e o belo são intangíveis. E a beleza dessa busca está justamente nessa intangibilidade, na impossibilidade de se materializar o objetivo, pois o esforço nunca termina, há sempre algo mais a melhorar.

Nietzsche, o velho ranzinza, se iguala, então, aos poetas como Neruda, Rimbaud, Fernando Pessoa, Jorge Luis Borges e, também, aos profetas, como Confúcio, Lao Zi, Buda, Jesus Cristo (que ele tanto combatia) na campanha por essa busca do melhorar-se e melhorar o mundo e, como ele mesmo disse, de considerar a "vida como obra de arte". 

Como não lhe dar razão? O processo da arte é um eterno revisar, aparar de arestas, repensar e refazer. Transpor isso para a vida é maravilhoso, dá ânimo. Considerar a vida como uma obra de arte à caminho do belo, eternamente a se melhorar, em busca da atitude perfeita no melhor lugar, feito palavras de um poema, ou cores e curvas mais bem distribuídas, feito em escultura ou pintura, ou ainda cuidar atentamente da nossa história, como as narrativa em literatura.

Construir a vida como uma obra de arte nos coloca em uma relação mais atenta e amorosa com a nossa existência e escolhas. Além de que entender do nosso processo, das dificuldades que temos, nos coloca atentos às dificuldades que os outros também têm. Atenção à nós e empatia com o próximo. Quem diria que um conceito tão bonito pudesse vir de Friedrich Nietzsche?


segunda-feira, 10 de outubro de 2016

sexta-feira, 7 de outubro de 2016

Abençoados os ignorantes

Existe, na cultura popular, o ditado que diz ser, a ignorância, uma benção. Sempre achei um grande engodo, quase blasfêmia, um disparate propagar esse tipo de ideia. Imagino que tal conceito foi, certamente, criado por alguém muito esperto, que apresentou isso como uma verdade, mas com o escuso objetivo de manter-se no controle evitando o aumento de mentes questionadoras, que colocariam sua autoridade em risco.

Independente de quem e como essa ideia ganhou corpo e força, ela não resistiria tanto tempo no mundo se não existissem mentes que a acolhessem. Mentes preguiçosas ou covardes que preferem os cabrestos, os antolhos, que limitando o campo de visão e ação, deixariam a vida mais fácil, mais cômoda. É mais fácil ser guiado do que guiar dirão esses os partidários do saudoso carteiro Jaiminho, da Vila do Chaves, que vivia evitando a fadiga.

Do outro lado, temos Sócrates que, ao ser proclamado o homem mais sábio de toda a Grécia, concluiu que, se isso fosse a verdade, sua sabedoria só poderia vir da sua ignorância, respondendo ao título com um sonoro e sincero "Só sei que nada sei". E mais uma vez nos aparece a ideia da ignorância como algo bom.

Mas não podemos nos enganar, há aí uma armadilha conceitual entre as ignorâncias. Enquanto a ignorância de Sócrates vinha da humildade de, após muita reflexão e estudo, concluir nada saber por reconhecer-se mínimo frente ao infinito do conhecimento disponível no Universo; que cada nova resposta geraria uma nova pergunta, ad infinitum; a ignorância do homem comum vem da negação do conhecimento: por preguiça, fugindo do doloroso trabalho que é pensar; ou do orgulho, por achar que já sabe de tudo e nada mais precisa conhecer.

Essas duas ignorâncias são dois pontos opostos de um ciclo infinito que se inicia quando estamos humildemente ignorantes, como Sócrates, em busca de mais conhecimento, e atinge seu ápice quando dominamos o conhecimento. Entretanto, tendo em vista o infinito de coisas a conhecer que nos cerca, ao chegarmos ao ápice do ciclo, no pseudo-domínio do saber, é necessário perceber que há sempre muito mais a conhecer. Se não retomarmos a humildade e a percepção de que, apesar de tanto conhecimento já adquirido, existem muito mais coisas que desconhecemos do que coisas que conhecemos, estagnamo e, limitados, nos tornamos dogmáticos e arrogantes, brutos e interrompemos o processo de conhecer o universo, de evoluirmos, que deve ser continuo.

Então é verdade! A ignorância é, sim, uma benção! Quanto mais se sabe, menos se sabe, mais ignorantes nos tornamos. A ignorância pela preguiça ou medo de sofrimento, não traz paz alguma, apenas anestesia e, a longo prazo, inevitavelmente, trará as suas dores, multiplicadas, como uma ferida não tratada, que só vai aumentando e infeccionando mais e mais. É a ignorância pelo conhecimento a verdadeira ignorância abençoada do dito popular, é ela que nos faz humildes e nos dá a paz e a tranquilidade verdadeiras. 

Que bom, que benção é ser ignorante!

terça-feira, 4 de outubro de 2016

Caro Data Vermibus


Vou deixar morrer, em mim, o amor
que por ti nasceu e hoje é triste.
Pois nem mesmo o encanto que em mim existe
tem a eternidade da tua fuga.
E ao peito calejado dar descanso
do constante flerte com o descaso.
Recostar o espírito no abraço manso
da solidão, e nunca mais no da saudade.
Assim, ao definhar-se por completo,
e desse amor não restar sequer o afeto,
me liberto da desventura que é te bem querer.
Pois, antes que irremediável e grave,
melhor do amor fazer cadáver
do que estar morto ao se viver.



Nota 1: A palavra "cadáver", segundo a etimologia popular, teria origem na inscrição latina Caro Data Vermibus ("carne dada aos vermes"), que supostamente seria inscrita nos túmulos. Na verdade não se encontrou até hoje nenhuma inscrição romana deste género. Os etimologistas defendem que a palavra deriva da raiz latina cado, que significa "caído". (Fonte: Wikipedia)

Nota 2: Leia também os meus comentários sobre este poema.

sexta-feira, 30 de setembro de 2016

Quando vens


Visita-me, sempre tarde da noite, e me despertas do sono tranquilo para que eu admire tuas formas. Vaidosa. E a silhueta à meia luz se aconcreta em corpo, textura, cheiro e sabor. Serve-te de mim sem pejo! E como se fosse fina fazenda de cetim, embrulha-me por inteiro. Toca-me o peito, os ombros e o rosto; toca-me as narinas, as orelhas e os lábios; toca-me o ventre, as coxas e o sexo. Toca-me... toca-me...

E sorris! Ah, e como sorris! Uma imensidão! Feito o amor que evocas sempre quando vens. E se não vens, é com a saudade que o amor se enlaça e me lança num holocausto de mim mesmo, em teu favor. Clamo-te! Amo-te! Não durmo para acolher-te; traduzir-te; compreender-te as minúcias, até as entranhas; bem dizer-te, enfim.

Bendita! Por que me vens assim irresistível? Por que ecoas em mim feito a própria vida que, ao ver-te partir, contigo também se vai? Por quê? Bendita!

É porque te engano. Engano-te, bendita! Mesmo vitoriosa na peleja de nossas peles, não me tens domado, e tu bem sabes. Engana-te, bendita! Quem te doma sou eu. Pois é meu este ofício, quase heresia. Sou Poeta! Minha vida é fazer-te Poesia!

sexta-feira, 23 de setembro de 2016

Pelo amor à vida

*texto para o setembro amarelo, campanha mundial de prevenção ao suicídio.


É muito comum alguma melancolia na vida, é natural. Se não o fosse, não a sentiríamos. Mas é importante estar atento quando um quadro de melancolia atravessa as fronteiras da normalidade e se transforma em uma tristeza constante, viciante, paralisante.

Exitem muitas causas para as tristezas que nos levam a vários estados psicológicos mais extremos e perigosos como a depressão, nos quais a vida, que já não é fácil, fica exponencialmente mais difícil e pesada, ainda mais num mundo onde todos os paradigmas são materialistas. 

Não aceitar-se fisicamente; frustrações pessoais ou sociais; acúmulo de remorsos e culpas por atitudes impensadas e seus desdobramentos ruins; quando nada mais faz sentido; quando acabam-se todas as esperanças de que, através de um próximo passo, de um movimento seguinte da vida, as coisas vão começar a melhorar. Quando não resta mais força para resistir e continuar ou a esperança de receber qualquer tipo de auxílio exterior, nos sentimos marginais e inúteis. Desencadeamos, assim, processos de auto-punição consciente ou inconsciente; o auto-boicote e a falta amor e de cuidado conosco mesmos.

A consequência deste estado de lástimas e desespero pode ser o simples isolamento e o silêncio ou algo mais drástico como o desistir da própria vida, praticando o suicídio voluntário e imediato ou, ainda, uma outra forma de suicídio, inconsciente, a longo prazo: os vícios químicos e psicológicos que nos intoxicam e desgastam o corpo até que se acabem as possibilidades dele permanecer vivo.

Ou seja, resultado de diversos fatores e processos que culminam na perda do amor e da confiança em si mesmo, suicidar-se é um ato de desespero, mas que pode ser evitado. Conforme a OMS, mais de 90% dos suicídios poderiam ser evitados se fossemos mais atentos aos sintomas e cuidadosos no tratamento. Por isso é importante pedir ajuda e ajudar-se, sem medo de julgamentos.

Por isso, entender-se merecedor de ajuda é fundamental. O Perdão e o Autoperdão são remédios que combatem diretamente os mal-estares que criamos conosco e com os outros. Com eles, os rancores, os ódios, as tristezas e o sentir-se desconectado e marginalizado da sociedade são afastados, pois se entende que todo mundo é tão imperfeito quanto nós mesmos, e é muito normal falhar, não atingir o nível de perfeição que se sonhava.

Erramos ontem, erramos hoje e erraremos amanhã. A paciência com nossas próprias limitações é exercício de humildade, que pode melhorar nosso nível de paciência com as limitações dos outros que convivem conosco. Perdoar-se é entender-se humano, falível. Perdoar o outro é entendê-lo humano e falível também.

Assim, nos entendendo, nos amamos com mais facilidade. E, participando desse amor que nos exime da culpa, damos uma nova chance para, uma outra vez, mais fortes, humildes e pacientes vivenciar todas as experiências e oportunidades que a vida nos trará para fazermos, de cada dia, um dia melhor. E nunca mais restará dúvidas de que a vida sempre vale a pena, sempre.


Mais sobre isso:




sexta-feira, 16 de setembro de 2016

Amor de pai


Ao voltar pra casa, de ônibus, sentei-me ao lado de um senhor que estava ao telefone. Tão próximos que foi impossível não ouvir a conversa que ele estava tendo com alguém que, pelo contexto deveria ser a sua filha.

- Olha, tá muito difícil pra mim. Tá muito pesado. Não estou conseguindo bancar essas compras que vocês me pedem. As coisa estão caras no mercado. Acho que a gente precisa rever essa lista. Eu sei... eu sei que vocês precisam comer, mas, poxa, certeza que vocês estão comendo melhor do que eu! Eu estou comprando, pra vocês, coisas que eu nem tenho na minha casa. Sabe, eu quero dar do bom e do melhor pra vocês, mas tá ficando difícil. As coisas estão difíceis, o dinheiro tá curto. Acho que vocês tinham que economizar um pouco mais, fazer render melhor o que vocês tem aí. Você tá me entendendo? Não precisa comer essa carne toda, todo dia. É, eu sei... claro... eu sei, vocês estão se esforçando também, eu sei. Mas, você me entende? Tem que reforçar isso aí, tá? Evitar desperdício, essas coisas. Sim, tudo bem. Tô, eu tô bem, só preocupado com isso aí, não tá fácil, né? Hum... e ele tá bem? Tá faltando alguma coisa? Uhum... leite em pó. Tá. Tá bom, eu levo o leite em pó. Tá, vou ver o que eu faço, eu dou um jeito, eu levo o leite em pó.

Cheguei ao meu ponto, desci. E levei comigo um nó na garganta.

quarta-feira, 14 de setembro de 2016

Soneto ao amor ausente


Deito-me na tua ausência da minha cama
Transito na tua ausência da minha casa
Vivo nu sem tua pele, que eu vestia
Toda manhã, na presença consumada

Se teus olhos são ausentes, vejo nada!
E anoiteço, sem estrelas, toda noite
O silêncio das canções se faz açoite
Pois é ausente a tua boca enamorada...

É tamanha ausência tua na cidade
Que ela mesma clama, à mim, tua presença!
E, abraçados, nos consola o fim de tarde:

"Em verdade, nada nunca está ausente
Sempre fica um pouco da gente nas coisas
Sempre fica um pouco das coisas na gente"


sexta-feira, 2 de setembro de 2016

O próximo passo


Agora eu preciso que você vá
Caminhe segura e distante
Me deixe vazio, mas só
Temos muita vida adiante

Dói deixar partir
Transformar tesouro em passado
Mas precisamos novamente sorrir
E não o faremos lado a lado


O poema acima é um poema de amor, fiz em 1997. Mas, hoje, ele me soou diferente, se encaixou com sentimento de hoje, com o adeus, de certa forma doloroso, mas necessário que damos à Dilma Rousseff que, acorrentada à um presidencialismo de coalizão, uma horripilante invenção brasileira, e a um partido político desestruturado, não governava mais. E não governaria, independente dos esforços que fizesse, tendo em vista o ninho de víboras ancestral do qual estava cercada e que, juntamente com todos nós, também ajudou a alimentar. Infelizmente, mas de forma que se construiu inevitável, são tais víboras que voltam ao poder.

É pressuposto que um presidente consiga governar, assim como é pressuposto para um romance, que se consiga amar e, mesmo com as maiores dificuldades e desafios, os interessados no sucesso da empreitada, se esforcem para o seu sucesso. Infelizmente, não me lembro de ter visto isso em nenhum momento na história de qualquer governo brasileiro. O jogo sempre foi conquistar mais para si, em detrimento do outro, seja este o povo ou a coligação "inimiga". E não há relacionamento duradouro quando uma das partes quer levar a vantagem.

As máscaras caem, inevitavelmente, e todas elas cairão. E com elas, as expectativas criadas, os projetos articulados, o futuro que estava em construção vai por terra. É por isso que se termina, é por isso que qualquer fim dói.

Dilma não foi a primeira e não será a última, é tradição nacional trocar de chefe de estado de forma inconsequente e irresponsável, para assistir interesses particulares. Desde a nomeação de Dom Pedro II, um jovem de 14 anos de idade como Imperador do Brasil isso vem se repetindo através de golpes e complôs.

Mas é possível acabar com essa dança das cadeiras desgovernada. Começando agora, que o debate político está em todas as casas, pode demorar algumas décadas, mas é possível retomar as nossas responsabilidades, as rédeas das nossas instituições e restaurar a sua legitimidade e sua conexão com a vontade popular, o que hoje, definitivamente não existe.

Por agora, não tenhamos medo, o futuro próximo não será nenhum pouco diferente do que sempre vivemos, afinal são os mesmos governantes, nada mudou. O tempo provou que a "chance de mudança" oferecida era falsa. Sejamos mais atentos da próxima vez. Aproveitemos a chance de amadurecer politicamente que estamos tendo, aproveitemos para aguçar o nosso faro, o nosso tato. Assim como acontece em todo fim de relacionamento, nos coloquemos sob análise sincera e façamos o mea culpa.

Definitivamente, não é tempo de choro, não é tempo de desespero, é tempo de darmos o próximo passo, um passo mais seguro, mesmo que um tanto doloroso, do que todos os passos que já demos até hoje.



sexta-feira, 26 de agosto de 2016

A Boa Morte


Quando vier a Primavera,
Se eu já estiver morto,
As flores florirão da mesma maneira
E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.
A realidade não precisa de mim.
Sinto uma alegria enorme
Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma
Se soubesse que amanhã morria
E a Primavera era depois de amanhã,
Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.
Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo?
Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;
E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.
Por isso, se morrer agora, morro contente,
Porque tudo é real e tudo está certo.
Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem.
Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele.
Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências.
O que for, quando for, é que será o que é.



A alegria de Fernando Pessoa, que assina o poema acima, "Quando vier a Primavera", como Alberto Caieiro, é a alegria que também busco. Essa paz de saber-se mortal, finito e não se abalar; pelo contrário, sentir-se livre e tranquilo com o inevitável destino. E não só eu, é a paz que a humanidade persegue desde tempos imemoriais, quando surgiram, pela primeira vez, as dúvidas sobre o que é a morte.

Nasceram, então, dos questionamentos, um infinito de mitos, medos, dogmas, traumas, ansiedades, remorsos, festas, lágrimas. Tristemente, principalmente no mundo ocidental, a morte se tornou algo ruim, que desperta medo, que não se deve falar ou pensar sobre. E hoje, colhemos frutos amargos desse que é um dos maiores erros da cultura contemporânea de negação da morte. Vivemos despreparados para os adeuses, que são tantos e sempre serão.

Para os Budistas, os Espíritas e outros reencarnacionistas, o bom pensar na morte resulta num bom pensar na vida e, por consequência, um melhor viver; é bom e necessário. Afinal, como diz outro poeta, Vinícius de Moraes, no Poema de Natal: "Por isso temos braços longos para os adeuses". Somos feitos pra isso.

Caso ainda não saiba, qualquer um de nós pode morrer a qualquer momento, é inevitável. Estar doente ou a saudável não alteram as probabilidades de óbito, o próximo passo não é garantido para ninguém. Quantas vezes já passamos triscando pelo nosso quase último momento e nem percebemos, ou percebemos e continuamos a mesma vida postergadora, confiando na ilusão do amanhã.

Foram tantos alertas mais leves que não me fizeram aproveitar melhor o tempo! A vida é urgente, sim, e eu precisei ganhar duas cicatrizes físicas que me lembram disso a cada vez que tiro a camisa. Hoje agradeço aos autores delas, tanto ao agressor quanto ao médico que me salvaram. Sim, salvaram, os dois. O primeiro, de que eu desperdiçasse a vida; o segundo, de que eu perdesse a vida. Mas espero que a maioria de nós não precise de algo tão drástico para melhorar a forma de viver.

No Cristianismo existe a figura da Ressurreição, que é voltar da morte com o mesmo corpo. Clínica e fisicamente impossível, por motivos óbvios – pelo menos até agora –, mas metaforicamente viável, além de um belo conceito. Ressuscitamos quando, por motivos tantos, deixamos morrer o velho Ego e, no mesmo corpo, ressurgimos renovados. Ou, de forma mais simples, a cada novo dia, que nos é dado em branco, para fazermos algo melhor do que no dia anterior. Foi o que aconteceu comigo.

Uma nova vida num mesmo corpo é possível. Talvez seja essa a mensagem, a princípio esdrúxula, da ressurreição bíblica que, agora, já me faz melhor sentido. E ressuscitemos hoje, que é o único tempo que existe. Sem medo da morte, morremos e ressuscitamos todos os dias, sem sofrer, conforme nos sugerem vários dos grandes avatares que já caminharam por essa Terra. Afinal, voltando ao Vinícius de Moraes, no já citado Poema de Natal: "da morte, apenas nascemos, imensamente."

sexta-feira, 19 de agosto de 2016

Críticas à crítica

Não sabemos quando na história humana atribuímos ao verbo "criticar" o aspecto exclusivamente negativo. Hoje, criticar significa falar mal, mas o dicionário sempre nos lembra que criticar é apenas avaliar, julgar. Ou seja, também é possível criticar, avaliar ou julgar algo positivamente.

O processo crítico depende de que quem critica tenha algum conteúdo, argumentos que dialoguem, que o conectem com o que está sendo avaliado, seja ele uma obra de arte, um costume, ou uma pessoa. Para avaliar algo é preciso compreendê-lo, entender o processo que o fez ser o que é e o onde ele pretende chegar. Assim, após entendido, refletido, digerido, emite-se o juízo positivo ou negativo.

Quando não entendemos o que estamos avaliando, achamos feio, falamos mal. E arrogantes que somos, concluímos que falar mal é mais fácil do que tentar entender e se conectar. Talvez seja daí, pela maior incidência de julgamentos negativos, pela facilidade de produzi-los, nos desacostumamos com a possibilidade da existência da crítica positiva e nos condicionamos de que crítica é algo sempre negativo.

Mas, sem remorsos! A culpa não é só nossa. Não nos preocupamos em entender o outro lado, porque não fomos treinados pra isso. Sócrates sugeria o uso de três filtros para averiguar se uma opinião merecia ser emitida: Bondade, Verdade e Utilidade. Ou seja, uma opinião só mereceria ser emitida se fosse para o bem, fundada na verdade e tivesse alguma utilidade. Desta forma, sem uma cultura crítica, que deveria nos ser ensinada nos bancos escolares, nem sequer sabemos da existência de Sócrates, quem dirá do que ele disse. E, assim, unindo desconhecimento com a impressão de que temos que emitir opinião sobre tudo, essa urgência opinativa que as redes sociais nos trouxeram, falamos muito e sem pensar, tanto que poucos se lembram das próprias opiniões, se afogando em um mar de contradições sem perceber.

É hora de despertar! A crítica negativa é o atalho do preguiçoso, o ato falho do desavisado, como também o são as atitudes negativas. É mais fácil desdenhar do que cogitar; jogar fora do que consertar, seja um eletrodoméstico ou um relacionamento; é mais fácil dizer que não gostei do que assumir não ter entendido e me esforçar para entender. Tudo sendo imperfeito, é mais fácil apontar alguns dos milhares defeitos, que obviamente existirão, do que analisar um pouco mais a fundo e identificar as exceções da regra, onde não há defeitos ou erros, e tecer algum elogio.

Criticar é um ato de conexão e só se conecta quem se coloca no mesmo nível, compartilha dos mesmos valores, mesmo que temporariamente e, por isso, é um exercício de humildade e empatia. A ausência de humildade e o orgulho nos faz sofrer e causar sofrimentos sempre que avaliamos ou somos avaliados, não importa se bem ou mal. Então, combater as fortificações o ego, que nos transformam em seres invencíveis e perfeitos, nos ajudaria a tecer e a receber críticas de uma forma mais madura, mais caridosa e humilde e, quem sabe, tomarmos providências para nos melhorar. Talvez, dessa forma, recolocaríamos no vocábulo "críticar" a sua tão bela e útil dualidade que, entre o bem e o mal, nos ajuda a chegar, sempre, num lugar melhor.

sexta-feira, 12 de agosto de 2016

Quando o nome não importa

E se eu estiver errado? E se não existir nada disso em que acredito: Deus, Reencarnação, um sentido e um motivo pra tudo? E se for apenas o acaso, uma confluência de fatores aleatórios? É o que às vezes me perguntam e que, por exercício filosófico, também me pergunto de tempos em tempos.

Desde sempre tenta-se provar a existência de Deus. Vejo, semanalmente, circulando pela internet, várias matérias, estudos científicos ou não, sobre esse tema. Alguns comprovam a existência, outros comprovam a inexistência e, outros tantos, são inconclusivos. São, mesmo, desnecessários.

Então vamos, por exercício, imaginar um Universo sem Deus, sem causa e sem objetivo. Um universo cujas relações sejam resultado de encontros e desencontros, equilíbrio e desequilíbrio ao acaso, onde as questões materiais são as únicas existentes.

Sabemos ser, o Universo, extremamente equilibrado, e isso científico. Já vi estudos dizendo que se houvesse uma diferença milimétrica no coeficiente de atração gravitacional – ou seja, na força que atrai e mantém nossas as moléculas unidas –, tanto pra mais quanto pra menos, tudo entraria em colapso e nenhum tipo do que chamamos de "matéria" conseguiria existir.

Portanto, equilíbrio me parece ser a palavra chave do Universo. E esse equilíbrio milimétrico pode ser observado em tudo. Na natureza, em tudo o que nos cerca, todos os minerais, fauna e flora se equilibram e se complementam na exata necessidade e possibilidade de cada um. Não vemos animais irem à caça sem fome, e se atacam é por necessidade imperiosa de manter-se vivo, jamais por esporte ou diversão. Uma árvore nunca acumula seus frutos só para si, pelo contrário! Ela oferece, além do alimento, abrigo, até mesmo praqueles que a destroem, como insetos ou humanos.

Notamos, então, que tudo o que existe se sustenta entre si e, se houvesse Deus no Universo que analisamos, diríamos que tudo se conecta de uma forma inteligente. Mas, inteligência depende de algum tipo de ente para se manifestar e, não o havendo este ente, chamaremos essa relação de dinâmica e equilibrada. 

Também sabemos que todo desequilíbrio nessa equação universal vem de um único fator: a ação humana. Nós, desavisados de que somos parte desse sistema, agimos como desconectados dele, criando desequilíbrios naturais e climáticos, pragas, epidemias e outras coisas do gênero e que nos trazem sofrimento. Ora, se somos parte do sistema, feitos da mesma matéria, através das mesmas "leis da física", o que nos permitiria agir sem considerar tais "leis"?

Matamos e nos alimentamos acima da necessidade; acumulamos nossos frutos até que nossos galhos se quebrarem; ingerimos veneno diariamente; vivemos a primavera durante inverno, o dia durante a noite, a vida na morte, a morte na vida. E nos achamos no direito de reclamar da dor, único resultado possível da nossa inconsequência.

Atração, caridade, progresso e amor são algumas das várias regras evidentes na natureza e a simples lógica sugere respeitá-las, independente do que as tenha definido, seja o acaso, o caos, o cosmo, a natureza ou, até mesmo, Deus.

sexta-feira, 5 de agosto de 2016

Você mudou muito?

Vagava pela internet quando apitou o Facebook. Era uma pergunta: "você mudou muito?". Tão clara e objetiva mas, nos primeiros segundos, espantei-me por não saber a resposta. O outro lado esclarece que, lendo meus textos, me percebeu diferente.

Lembrei-me de como eu era, há anos atrás, quando nos encontramos pela última vez. Lembrei-me de como eu era o ano passado, e me vi agora, como estou. É, eu havia mudado, mas não tinha percebido que a mudança interior já estava se mostrando ao exterior. E um exterior distante, pois quem percebeu essa mudança mora na Alemanha. Devo ter mudado bastante mesmo!

Finalmente consegui a resposta e, com convicção, respondi: "Sim, mudei muito". E como foi bom poder responder isso! Imaginei a tristeza e a frustração se a resposta fosse um "mudei nada! Continuo na mesma vida chata de sempre". Que alívio! Que bom que eu mudei!

Então passei os dias seguintes tentando me lembrar quando essa difícil e prazerosa jornada pela mudança começou. Cheguei até 1994, quando eu tinha 14 anos de idade e, espantado com a "vida adulta" que meus colegas já viviam, comentei para um amigo: "Me sinto atrasado vendo eles fazendo todas essas coisas que eu ainda não faço”. E a resposta que esse amigo me deu - os amigos, sempre eles! - subverteu, pela primeira vez, a realidade à minha frente: "E quem disse que é você o atrasado? E se forem eles os adiantados?".

De queixo caído, com o cérebro faiscando como nunca, senti, pela primeira vez, que somos nós que significamos as coisas e não o contrário. Aceitar a vida, passivamente, sem qualquer processo crítico é criar um calabouço para si mesmo. Rompi, naquele momento, os grilhões e aceitei o chamado da consciência.

Embarquei numa aventura em busca da felicidade, da verdade das coisas, do auto-questionamento, auto-conhecimento e auto-superação, tão ou mais emocionante quanto a saga de um Hobbit pela Terra Média ou a de um jovem bruxo britânico. É uma jornada sem mapa, cujo caminho a seguir é revelado durante um percurso cheio de enfrentamentos interiores e exteriores, com altos e baixos, armadilhas, cativeiros e redenções, como em toda boa aventura.

Mas não há jornada se há medo, e não há vivencia sem erros. Se há um fim, existe um começo e, principalmente, um meio, um caminho, um processo. Desde aquele início, em 1994, já andei por vários caminhos diferentes, montando acampamento em lugares que é melhor nem mencionar, de tão horripilantes. Mas o desconforto que ali encontrava me fazia mudar, seguir adiante, para qualquer outro lugar, se melhor ou pior, não importava, desde que diferente. Importava era tentar algo melhor.

E a cada novo caminho, a cada novo lugar visitado, uma nova paisagem se agrega e traz, melhor do que respostas, mais perguntas, mais fome, mais sede, mais motivos para seguir. Ser perseverante é uma virtude essencial para o aventureiro nesse tipo de peregrinação. Que por ser longa, possivelmente eterna, não haverá vitória apenas ao final, mas a cada passo dado, a cada vez que a resposta for "sim" para quando te perguntarem se você mudou. E você, mudou muito?